8 de março de 2010

PARA ONDE VAI A ARGÉLIA? - Por Miguel Urbano Rodrigues


O fascínio que Argel exerce há séculos sobre os estrangeiros que ali chegam é inseparável do cenário.
O casario, predominantemente branco, sobe pelas encostas que a encerram em gigantesca taça, moldura de uma baía deslumbrante, apenas superada em grandeza pela Guanabara e Nápoles.
O Colóquio Internacional de Homenagem a Georges Labica proporcionou-me em Fevereiro o reencontro com a cidade, por onde tinha passado em 1953 quando a Argélia era ainda uma colónia mascarada de parcela da França.
Dessa breve visita guardava na memória imagens de uma cidade onde a grande maioria dos moradores era de origem francesa. Recordo ter percorrido então a Casbah, o núcleo urbano anterior à conquista onde residiam muitas dezenas de milhares de muçulmanos, definidos como indígenas pela administração colonial.
Achei a Casbah actual quase irreconhecível.
Agora Argel é uma cidade muçulmana onde os europeus são uma minoria insignificante. Na Casbah não há gendarmes nem bandeiras francesas, o árabe substituiu a língua de Voltaire como idioma nacional, mas a modernidade aparente da era da globalização impõe-se nos ruídos das ruas, nas cores de cartazes publicitários, e no desaparecimento do vestuário tradicional.
Declarada património da humanidade, a cidade velha não se assemelha a qualquer outra do Islão. Nos 45 hectares que restam da antiga capital amuralhada da época da conquista, concentram-se 1200 casas, labirinto de ruelas, becos, escadas tortuosas, numa malha urbana onde se destacam mesquitas e palácios do período da dominação turca, santuários, museus, um medersa (universidade corânica) e minúsculas lojas.
Com alguma surpresa, recordando cidades asiáticas do Islão como a antiga Cabul, achei a Casbah limpa.
Percorrendo o dédalo das suas ruas, a minha imaginação viajou pelo tempo. Revivi a gesta da resistência de 18 anos do emir Abdel Kader à invasão francesa de 1830 e, com emoção, a luta travada na Casbah pelos patriotas da FLN contra os paraquedistas de Massu, imortalizada em «A Batalha de Argel», o filme de Pontecorvo.
Pisando aquele solo milenar, com o olhar descendo para o mar azul das escarpas nuas que fecham o horizonte, subiu em mim naquela tarde fria um sentimento de respeito e admiração pelos povos da Argélia que ao longo de 20 séculos se bateram com heroísmo contra todos os invasores desde Roma à ocupação francesa.

UM PAÍS MILITARIZADO

As Forças Armadas Argelinas, avaliadas em 180 000 homens (as mulheres são escassas no exercito), constituem hoje talvez o corpo militar mais numeroso no Continente africano, superando as do Egipto.
Esse gigantismo não resulta de qualquer ameaça externa previsível. O exército cresceu como resposta do Estado à onda de violência desencadeada na sociedade argelina pela Frente Islâmica de Salvação – FIS.
Não cabe neste artigo comentar a situação criada pelo desafio do radicalismo islamista ao Poder detido pelos herdeiros do movimento que dirigira a luta pela independência nacional.
Registo somente que a mensagem do FIS encontrou de início receptividade entre as camadas mais desfavorecidas de uma população misérrima, que perdera a esperança suscitada pela independência e as promessas do «socialismo argelino».
Enquanto a população do país quadruplicou desde meados do século passado – hoje supera os 30 milhões – a anunciada revolução não se concretizou e o êxodo total da população europeia provocou o desmoronamento do sistema económico preexistente.
A anulação das eleições ganhas pelo FIS, que se beneficiava do descontentamento geral, traduziu-se numa vaga de violência irracional (150 000 mortos e centenas de milhares de exilados). O Grande Medo contribuiu decisivamente para a perda de popularidade da organização.
A resposta do Estado foi a militarização do país.
Argel é hoje uma cidade muito mais «segura» do que a maioria das capitais da América Latina. A FIS foi militarmente esmagada.
Mas o preço social da derrota infligida à organização islamista foi muito alto. A densidade do policiamento e a visibilidade do dispositivo militar impressionam o forasteiro.
Às seis da tarde não se encontra uma mulher nas praças e ruas do centro; às oito, a cidade, deserta, parece adormecida. A vida nocturna é praticamente inexistente.
O contraste com o dia perturba o visitante porque a grande metrópole (talvez uns três milhões com os subúrbios, mas as estatísticas argelinas não inspiram muita confiança ) é um formigueiro de gente desde a manhã ao pôr-do-sol.
Na própria Residência oficial onde se realizou o Colóquio Labica, reservada aos participantes e convidados, não se podia entrar sem passagem por um detector de metais similar ao dos aeroportos.
Um cordão de militares cerca a capital à noite. Mas nas três vezes que saímos para jantar em restaurantes do centro, distante meia dúzia de quilómetros dos bairros altos, os carros oficiais em que seguíamos foram submetidos a numerosos controlos em postos militares. Com os táxis, a inspecção é mais rigorosa.


UMA ECONOMIA FRÁGIL

Durante a nossa breve permanência em Argel, a minha companheira e eu tivemos a oportunidade de manter prolongados encontros com velhos combatentes da guerra de independência. Essas conversas proporcionaram-me uma informação importante, embora superficial sobre a conjuntura argelina, tal como a sentem e vivem intelectuais revolucionários distanciados do Poder.
Falei também com jornalistas que esboçaram um panorama da comunicação social.
Uma realidade indesmentível: a dependência da Argélia dos combustíveis é preocupante. O petróleo e o gás fornecem, segundo as estatísticas oficiais, quase 98% das exportações do país e representam 40% do Produto Interno Bruto. As reservas comprovadas garantem a extracção no nível actual até 2030, o que suscita inquietação quanto ao futuro de uma sociedade na qual o sector produtivo é de uma insuficiência transparente.
A agricultura atravessa uma crise profunda, agravada pela política neoliberal ortodoxa imposta no início dos anos 90. Um punhado de multimilionários monopoliza as importações de cereais, leite e carne, com a cumplicidade de personalidades destacadas do Exército. A consequência dessa estratégia foi desastrosa para os produtores nacionais, incapazes de suportar a concorrência dos preços internacionais. Aliás, as cooperativas estatais formadas após a independência não puderam corresponder às esperanças nelas depositadas por falta de apoio do Poder central.
Essa grande burguesia , que acumulou fortunas colossais, possui casas no estrangeiro, onde passa largas temporadas . Não se conhece o nível das suas contas em bancos suíços, mas é certamente elevadíssimo. Num patamar inferior, formou-se uma burguesia prospera , enriquecida também através de negócios escuros.
Mas muitos milhões de argelinos vivem abaixo do nível da pobreza.
A crise económica e social assumiu tamanhas proporções que o governo sentiu a necessidade de reconhecer o fracasso da chamada economia de mercado cuja apologia fizera durante anos. No seu discurso de Junho de 2008, o Presidente Bouteflika anunciou uma viragem de estratégia. Mas a condenação da política neoliberal não foi acompanhada da formulação de uma alternativa. Não basta reconhecer que as transnacionais que tinham prometido realizar investimentos grandiosos trataram de saquear o país, tripudiando sobre os compromissos assumidos. A nova lei de finanças suprimiu os privilégios de que gozava o capital estrangeiro; mas o Poder não elaborou um projecto nacional.
O Presidente Boumedienne, após o golpe que derrubou Ben Bella, ainda utilizou durante algum tempo a expressão «socialismo argelino». Mas a fórmula, retórica, não travou a marcha do país rumo a um capitalismo dependente.
A indústria metalúrgica, que gerou esperanças graças a uma siderurgia nacional que viabilizou a produção de tractores e a montagem de veículos de transporte, é hoje pouco mais do que uma recordação.
O PIB per capita não excede 2300 dólares.
A Argélia é territorialmente um gigante com mais de 2.350.000 quilómetros quadrados (grande parte no Deserto do Sahara, onde se concentram o petróleo e o gás). Mas enormes extensões de terras férteis permanecem incultas.

TEMOR DO FUTURO

Uma implantação débil da Internet facilita a compreensão de um absurdo aparente: as grandes tiragens dos jornais argelinos num Continente onde se lê pouquíssimo.
O maior diário do país, em língua árabe, tem uma tiragem que ronda os 400.000 exemplares. O principal dos diários de língua francesa atinge os 80.000.
Oficialmente não existe censura. Mas jornalistas com quem falei disseram-me que a auto-censura é rotineira na maioria das redacções.
Como a corrupção é considerada um flagelo nacional, os editoriais e reportagens sobre grandes escândalos são tolerados e por vezes incentivados. Mas desde que neles não seja transparente o envolvimento de altas personalidades das Forças Armadas.
Oficialmente ,estas apresentam-se unidas no apoio ao regime. Mas a realidade desmente a imagem difundida . No corpo de oficiais , mesmo nos escalões superiores, manifestam-se tendências contraditórias quanto ao rumo do país.
Na área internacional a imprensa é anti sionista e, com o apoio oficial, solidária com a luta dos povos da Palestina e do Líbano. O Hamas e o Hezbollah não são satanizados, ao contrário do que ocorre noutros países muçulmanos. As críticas às guerras de agressão dos EUA no Iraque e no Afeganistão e às campanhas contra o Irão são aliás frequentes.
Mas no tocante às relações internacionais do governo Bouteflika as surpresas são muitas para o visitante desconhecedor dos meandros sinuosos da estratégia do Poder.
A economia está orientada para a União Europeia (aproximadamente 60 % do comercio externo), mas o alto comando do Exército aprofunda a cooperação militar com a China e mantêm relações cordiais com Washington. É inquietante que a CIA tenha sido autorizada a funcionar discretamente em Argel. O governo Obama, invocando a necessidade de «combater o terrorismo» no Continente iniciou negociações –segundo a revista web de Michel Collon- tendentes à utilização pelos EUA da nova base militar instalada em Tamanrasset, no extremo sul.
Com o governo de Sarkozy as relações são hoje marcadas por uma tensão inocultável. A França foi forçada pela luta do povo argelino a aceitar a independência do país. Mas os seus sucessivos governos nunca assumiram uma atitude responsável no relacionamento com a Republica da Argélia. Não somente recusaram sempre debater a legitimidade de reparações materiais ao povo da sua antiga colónia ( centenas de milhares de argelinos foram mortos durante os oito anos da guerra que provocou enormes destruições materiais) como , sobretudo desde que Sarkozy chegou à Presidência , insistem em reescrever a Historia, apresentando a colonização como globalmente positiva.

UM GOVERNO DESPRESTIGIADO

A FLN, o partido do governo, é hoje uma caricatura do movimento de libertação que dirigiu a luta pela independência numa guerra de oito anos. Como não dispõe de uma base eleitoral que lhe garanta maioria no Parlamento montou uma heterogénea coligação, a Aliança Presidencial. Os seus parceiros são a União Nacional Democrática (RND), um partido de tecnocratas cuja bandeira é a modernização do país, e o Movimento Social Popular (ex-Hamas), organização populista.
A ideologia está ausente da teoria e da prática da Aliança e do governo por ela apoiado.
O Presidente Bouteflika mantem-se no poder pela inexistência de uma alternativa a curto prazo. Mas perdeu o escasso prestígio que tinha ao ser eleito em 1999. Na opinião de observadores internacionais o FIS, não obstante inspirar hoje mais temor e repulsa do que simpatia, venceria as próximas eleições se elas fossem normais. Seria essa uma forma de castigar Bouteflika e os seus aliados.
Para se avaliar a complexidade da reacção popular perante o Poder e aqueles que para o enfrentar optaram por uma orgia de violência é útil esclarecer que o analfabetismo real na Argélia deve rondar os 50% ,o que desmente as estatísticas oficiais.
O fosso que separa uma intelectualidade brilhante (na Universidade o francês predomina sobre o árabe) e as massas é muito profundo.
Mas é importante registar que houve un enorme progresso no campo da Educação. Antes da independência apenas umas centenas de argelinos tinham acesso ao ensino universitário, reservado quase exclusivamente a europeus. Hoje, o total de estudantes nas numerosas universidades existentes ultrapassa os 250 000 . Lamentavelmente, o diploma , concluídos os cursos, não assegura trabalho a dezenas de milhares, cuja frustração é legitima.
Os sindicatos são hoje de pura fachada, e o desemprego, elevadíssimo, dificulta a luta dos trabalhadores cuja combatividade é escassa pela ausência de uma organização revolucionária com implantação entre a classe operária , capaz de a mobilizar em defesa dos seus direitos , uma organização que pudesse desempenhar o papel assumido durante a guerra pelo Partido Comunista Argelino.
Num país onde o salário mínimo equivale a 150 euros, e o médio oscila entre os 250 e os 300, o custo de vida é comparável ao de Portugal com a peculiaridade de os hotéis e os restaurantes serem caríssimos.
Para onde caminha a Argélia?
Não me sinto em condições de esboçar uma resposta.
Nos meus breves dias de Argel encontrei-me me num país desconhecido que perdeu a grande esperança que mobilizou a nação numa guerra de libertação épica.
A juventude actual nasceu após a guerra da independência , tal como a geração anterior. Sente uma enorme frustração pela ausência de perspectivas. Um veterano do combate dos anos 50 dizia-me ,com tristeza: « Milhares de jovens emigram todos os anos ,principalmente para a França e o Quebec, no Canadá. Acredito que se não fosse a extrema dificuldade de obtenção de vistos para entrar na Europa e na América, nove entre cada dez jovens argelinos, deixariam o país».
O futuro próximo parece sombrio. Mas a história heróica dos povos da Argélia demarca-me de uma atitude pessimista.
Conheci ali neste reencontro homens cuja lucidez e firmeza reforçaram a minha confiança no amanhã da terra milenarmente martirizada da Argélia, berço de grandes pensadores e sábios e de revolucionários que se impuseram ao respeito da humanidade.


Serpa, Fevereiro de 2010

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