20 de dezembro de 2011

Revisitando a Venezuela (conclusão) - Sobre a ideologia da Revolução Bolivariana

por Miguel Urbano Rodrigues

No final de Novembro e início de Dezembro participei a convite do Ministério da Cultura da Venezuela no VI Foro Internacional de Filosofia de Maracaibo, que se desdobrou pelos 23 Estados do país e cuja sessão de encerramento se realizou em Caracas.
O título do evento pode confundir porque muitos dos participantes (metade venezuelanos) e dos estrangeiros, vindos de quase trinta países da América, Ásia, África e Europa eram sociólogos, historiadores e escritores.
Não foram apresentadas comunicações. O Foro promoveu debates em quatro Mesas sobre o tema central do Encontro: Estado, Revolução e Construção de Hegemonia.
Tudo foi atípico numa iniciativa que reuniu intelectuais com formações muito diferentes que encaram as transformações da sociedade, as rupturas revolucionárias e o socialismo como alternativa ao capitalismo sob perspectivas não coincidentes.
O Foro, dedicado a Frantz Fanon, abriu com uma conferência de Garcia Linera, o vice-presidente da Bolívia, e fechou com a aprovação de uma Declaração Final numa sessão presidida pelo ministro dos Negócios Estrangeiros.
Aos participantes estrangeiros foi oferecida a oportunidade de visitar em equipas de dois, as capitais dos Estados da Republica onde pronunciaram conferências sobre o tema geral do Foro e conviveram com colectivos de conselhos comunais.
À margem do programa foi para mim gratificante e importante reencontrar amigos da América Latina que não via há anos.
Registei com satisfação a abertura dos organizadores à crítica construtiva de facetas do processo revolucionário venezuelano. Carmen Bohorquez, que foi a organizadora principal do Foro, em representação do Ministério da Cultura, não hesitou em dizer-me que era mais útil para a Venezuela Bolivariana a reflexão crítica dos amigos com ela solidários do que a apologia incondicional do processo.

A UTOPIA DO HOMEM NOVO
Revolução jovem, a venezuelana, empenhada na construção de uma sociedade de bem-estar colectivo, livre da exploração do homem, retoma o mito da revolução perfeita como desfecho desejável e possível da caminhada para um socialismo de novo tipo.
Não me surpreendeu por isso a ênfase posta em múltiplas intervenções na criação do homem novo, filho da revolução, o cidadão despojado dos vícios que nas sociedades capitalistas transformam os trabalhadores em instrumentos passivos do sistema de opressão e os robotizam progressivamente.
Falou-se naturalmente muito de Che Guevara como paradigma do revolucionário ideal, fonte de inspiração do chamado Socialismo do Século XXI.
Para os que assim pensam será o homem novo, que estaria a surgir, o agente da transformação social, o motor da construção do socialismo.
Predomina a tendência para o esquecimento de lições importantes da Historia. Esquece-se que na Rússia, desagregada a União Soviética, reapareceram de repente milhões de homens velhos com a reimplantação do capitalismo. O mesmo ocorreu nos países da Europa Oriental, da Estónia à Roménia. Mesmo em Cuba, como lembrou Fidel, a ameaça maior à Revolução vem hoje do interior e não de fora, apesar da agressividade imperialista. Porque no tecido social reaparece também ali o homem velho. Esquece-se que a tomada do poder por um partido revolucionário e a substituição do modo de produção capitalista pelo socialista não destrói a cultura da burguesia cujas sementes hibernam como superstrutura. Esquece-se que o homem como ser social mudou muito pouco desde a Grécia de Péricles, apesar da diversidade das culturas e das prodigiosas conquistas da ciência e da técnica.
Os paladinos do homem novo, que seria forjado na transição, invertem o movimento da Historia. Imaginam um ser que não existe. O homem novo somente pode tornar-se realidade após a erradicação do planeta do capitalismo e do imperialismo.
A criação do poder comunal na Venezuela é muito positiva. O governo incentiva as comunas. Nos meios rurais e em muitos Estados as cidades comunitárias desenvolvem-se numa atmosfera humanizada. Mas é romântica a convicção de que o sistema pode alastrar a todo o país, alterando fundamentalmente o comportamento da população. Em Caracas e em grandes metrópoles como Maracaibo, Valência e outras, o espírito comunitário seria contaminado pelo contacto quotidiano com as trituradoras e enraizadas engrenagens capitalistas. A cultura da burguesia e a contra-cultura que promove a alienação contaminariam as comunas.

A VIA INSTITUCIONAL
A conferência de Garcia Linera, na abertura do Foro, foi, pela mensagem transmitida, uma tentativa de demonstração da viabilidade da transição para o socialismo pela via institucional.
O vice-presidente da Bolívia é um orador excepcional com um poder de comunicação incomum. Foi aclamado com entusiasmo pela grande maioria das centenas de pessoas que o ouviram no anfiteatro do Centro de Arte de Maracaibo.
Recorrendo no preambulo a uma definição do Estado incompatível com as de Marx e Lenine (nele inclui a musica, a literatura e outras frentes da cultura) passou a historiar fases da revolução na Bolívia e do seu avanço numa luta permanente contra a oligarquia e o imperialismo estado-unidense marcada por contradições inseparáveis da superação de cada confronto.
Sem subestimar os obstáculos a ultrapassar e a ameaça exterior, afirmou que a conquista do poder político num Estado capitalista pode ser decisiva para a transformação radical da sociedade capitalista rumo ao socialismo.
No final declarou-se bolchevique, mas o seu brilhante discurso, marcado por concessões ao indigenismo, não foi o de um comunista. Citou muito Marx mas nas suas referências a Lénine deturpou-lhe o pensamento, nomeadamente na referência ao Comunismo de Guerra. Para ele a palavra socialismo é irrelevante; quem não a apreciar pode chamar "comunitarismo" ou governo do "viver bem" ao sistema alternativo ao capitalismo.
A adesão dos venezuelanos progressistas à tese central de Linera é compreensível. Os ideólogos da Revolução Bolivariana e o Presidente Chavez optaram pela via institucional como caminho para o socialismo. A ampla divulgação que têm no país os livros de Enrique Dussell, um filósofo hegeliano argentino que defende a convergência da "democracia participativa com a democracia representativa", é esclarecedora da convicção de que a Venezuela pode construir o socialismo pela via institucional, também designada por via pacifica, através de sucessivas etapas em choque com a antiga classe dominante.
A confusão principia no uso abusivo da palavra democracia. Na União Europeia as democracias burguesas são na realidade ditaduras da burguesia de fachada democrática. Nos EUA toma forma uma sociedade monstruosa que robotiza o homem transformando-o num ser passivo, inofensivo para o sistema.
Em conversa com quadros do PSUV lembrei-lhes que a História não apresenta um único exemplo que confirme a validade da via institucional para o socialismo. O caso do Chile é o mais rico de ensinamentos. O desfecho foi sangrento. A burguesia não é definitivamente derrotada sem uma confrontação final, violenta, com as forças que apoiam o poder politico revolucionário.

O SOCIALISMO DO SECULO XXI
Foi Chavez quem divulgou a expressão Socialismo do Século XXI em discurso pronunciado em 25 de Fevereiro de 2005. [1]
O Presidente venezuelano não é marxista e com esse neologismo pretendia incentivar o debate orientado para a criação de um "socialismo humanista". Segundo ele, a transformação económica funcionaria como agente da democracia participativa na assumpção de uma ética socialista "baseada no amor, na solidariedade e na igualdade entre os homens as mulheres, entre todos". O carácter utópico da tese transparece da reivindicação da originalidade da "criação heróica" que identifica no desejado "socialismo bolivariano, cristão, robinsoniano, indo-americano".
O projecto exige na prática, para a sua execução, um rápido definhamento do Estado que delegaria em ritmo acelerado muitas das suas funções sociais no poder popular à medida que a propriedade social adquirisse um papel protagónico, substituindo a estatal e a privada.
A contradição no discurso oficial é patente porque no contexto venezuelano as cidades comunitárias e o poder comunal somente puderam surgir por decisão de um Estado forte. Se ele "definhasse" seriam rapidamente destruídas.
Imaginando a travessia parar o socialismo do futuro tal como o concebem, os ministros e dirigentes do PSUV invocam muito Marx e a necessidade de conquistar a hegemonia em termos gramscianos. Chavez afirma que "a mente e o coração" se adquirem na prática, ajudando os trabalhadores explorados a entender o projecto revolucionário.
Mas os gramscianos venezuelanos deturpam o fundamental do pensamento do grande comunista italiano; e da obra do genial autor de "O Capital", muito citado, utilizam sobretudo textos do jovem Marx que incidem sobre o papel do individuo e o apagamento gradual do Estado nas sociedades em que este, desaparecidas as classes sociais, seria desnecessário.
Lénine porém é praticamente esquecido por esses intelectuais. Citam-no mas para se distanciarem da sua concepção do Partido Comunista e exorcizarem o centralismo democrático. A aceitação de teses anarquistas aflora por vezes na apologia do Socialismo do Século XXI que teria muito de uma autogestão exemplar.
Muitos dos quadros dirigentes da Revolução Bolivariana na sua crítica demolidora à União Soviética satanizam os partidos comunistas revolucionários e assumem uma posição anticomunista não consciencializada.
O denominador comum nesse discurso sobre a superioridade e o carácter inovador do Socialismo do Século XXI é a convicção profunda de que a via institucional adoptada pela Venezuela Bolivariana na transição para o socialismo é a única correcta no actual contexto histórico. O Socialismo do Século XXI seria assim uma fonte de inspiração para as experiencias revolucionárias em curso na América Latina.
Hugo Chavez, quando é recordado o desfecho trágico da via pacifica para o socialismo no Chile, argumenta que a Unidade Popular tentou levar adiante uma revolução desarmada enquanto a venezuelana é uma revolução armada, apoiada pela grande maioria das Forças Armadas. Subestima o significado do golpe militar de 2002, patrocinado pelo imperialismo estado-unidense, e reafirma que as instituições criadas pela burguesia para servir os objectivos do capitalismo podem ser transformadas de modo a funcionarem a serviço dos trabalhadores como sujeito da transição para o socialismo.
Independentemente do que se pense da Revolução Bolivariana, das suas opções e do seu rumo o processo em curso é apaixonante.
Uma certeza: sem Hugo Chavez, a Revolução dificilmente poderia sobreviver. Depende excessivamente do líder carismático que a tornou possível. O seu pendor populista e a imprevisibilidade das suas decisões não apagam a evidência: a Venezuela Bolivariana é hoje a vanguarda revolucionária da América Latina.
Ampliar a solidariedade com a pátria de Bolívar é portanto dever de todos os homens e mulheres progressistas na Europa, como na Ásia, na África como na América. Eles estão a lutar pela Humanidade.

Vila Nova de Gaia, 12/Dezembro/2011

(1) O sociólogo chileno Tomas Moulian empregou pela primeira vez a expressão no seu livro "Socialismo do Século XXI -a Quinta Via" nos anos 80 do século passado.

O original encontra-se em http://www.odiario.info/?p=2309
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

Revisitando a Venezuela (1) - A transição dificil

por Miguel Urbano Rodrigues
com Ana Catarina Almeida

Um vento de revolução sopra sobre a Venezuela. As suas rajadas chocam-se com as de um vento antagónico, o da contra-revolução, derrotada em duas tentativas de golpe, mas arrogante, agressiva.
Tudo está em movimento no país, cenário de uma intensa luta de classes acompanhada com paixão pelas forças progressistas de todo o Continente.
Logo ao desembarcar no aeroporto Simon Bolivar, em Caracas, sentimos que muita coisa mudara desde a nossa ultima visita, há quatro anos. Mas aquilo que separa o hoje do ontem e a motivação das transformações não é imediatamente identificável.
Uma tensão permanente marca o quotidiano da Venezuela, vanguarda das lutas revolucionárias na América Latina e, agora, laboratório ideológico do Continente.
Como quase todas as revoluções, a sua irrompeu contra a lógica aparente da História.
Nela o factor subjectivo foi determinante. O desafio ao poder oligárquico partiu de um caudilho militar revolucionário: Hugo Chavez Frias.

DO PROJECTO À REALIDADE
Uma campanha mediática mundial de desinformação contribuiu para que na Europa seja projectada a imagem de uma Venezuela em acelerada transição para o socialismo.
Essa imagem deforma a realidade.
Na Venezuela Bolivariana desenvolve-se um ambicioso processo revolucionário cujo objectivo é a construção do socialismo. Mas as estruturas económicas do país são ainda fundamentalmente capitalistas.
A Constituição de 1999 propõe-se refundar a República num estado social de direito e de justiça. Estabelece modelos alternativos à chamada democracia representativa e rejeita o neoliberalismo. O "modelo" de democracia participativa principiou a adquirir os contornos de um projecto diferente do inicial, após o lock-out petrolífero de 2003. Mas somente transcorridos dois anos Hugo Chavez tornou pública a opção pelo socialismo. O imperialismo reagiu intensificando a sua ofensiva contra a Revolução Bolivariana.
Oficialmente, a Venezuela é hoje uma sociedade em transição para o socialismo.
A fórmula é, porém, enganadora. O núcleo da base social de apoio ao Presidente, que lhe garantiu sucessivos êxitos eleitorais, foram desde o início as massas excluídas e não a classe trabalhadora, o que por si só imprimiu características peculiares ao processo de transição. A tomada de consciência dos trabalhadores do petróleo foi lenta. Até ao lock-out que paralisou o país, a PDVSA, o gigante petrolífero, embora nacionalizado, funcionava como um estado autónomo controlado por uma Administração contra-revolucionária; a central sindical amarela era na prática um instrumento da oligarquia e do imperialismo.
Tendo assumido a Presidência num contexto desfavorável, Chavez optou nos primeiros anos por uma política orientada para a rápida redução dos alarmantes níveis de desemprego, pobreza e exclusão social. Com o apoio da maioria do povo modificou profundamente a estrutura política e social.
A Revolução proclama o seu carácter anticapitalista e reafirma a sua decisão firme de construir o socialismo. Mas, com excepção do sector petrolífero, o capital privado continua a ser dominante na indústria, na agricultura, no comércio. A transição não impede que os capitais do petróleo contribuam para a reanimação do aparelho produtivo hegemonicamente controlado por empresas privadas. Daí um paradoxo: o sector capitalista da economia cresceu nos últimos anos em ritmo mais rápido do que o da economia social. Comentando esse fenómeno, Victor Alvarez, ex-ministro das Indústrias Básicas e de Minas, afirma que "uma retórica anti-imperialista, anti-capitalista e socialista não permitiu perceber que, amparada no investimento social da renda petrolífera e na melhora dos indicadores sociais, a economia se tenha tornado mais capitalista e a exploração dos trabalhadores mais acentuada". [1]
O peso do sector mercantil privado passou de 64,8% em 1999 para 70% em 2009 enquanto o público caiu de 35% para 30% na mesma década. O sector não petrolífero, sob controlo do capital privado, contribui com 77,5 % do PIB.
A adesão popular ao projecto de transição para o socialismo não evitou até agora que a percentagem correspondente à remuneração do trabalho tenha descido em dez anos de 39,7% para 36,2% enquanto a remuneração do capital tenha subido de 31,69% para 49,18%. [2]
A Venezuela entrou em recessão em 2010, mas a subida do preço do petróleo abre a possibilidade de alterar, em benefício da economia social, a situação existente. A transição para o socialismo, para ser real, exige a ruptura de mecanismos que permitem a exploração dos trabalhadores assalariados no sector privado.
No cumprimento do artigo 115 da Constituição, as nacionalizações e expropriações envolvem um volume enorme de recursos públicos, sob a forma de elevadas indemnizações a pagar pelo Estado, que são depois investidos pelas empresas privadas em negócios onde o capital obtém lucros colossais.

O PSUV
Lenine dizia que não há revolução vitoriosa sem um partido revolucionário.
Hugo Chavez assumiu essa evidência. Sucessivas vitórias eleitorais garantiram-lhe confortáveis maiorias na Assembleia Nacional Popular e eleger uma maioria de governadores e autarcas que o apoiavam. Mas essas maiorias diluíram-se rapidamente. A linguagem revolucionária não se traduzia numa prática revolucionária. Muitos quadros das organizações políticas do Pólo Patriótico actuavam em função dos seus interesses pessoais. Alguns romperam com o Presidente e integram hoje a oposição. Entre outros, destacadas personalidades como Luis Miquelena, que foi presidente da Assembleia Nacional e ministro do Interior, os generais Urdaneta e Baduel, ex-ministro da Defesa, o oficial que desempenhou um papel decisivo na derrota do golpe militar de 2002.
A corrupção alastrava.
O país carecia de um programa de governo debatido com as organizações que tinham apoiado as candidaturas de Chavez.
Em 2007 foi fundado o Partido Socialista Unido da Venezuela – PSUV no qual se fundiram o Movimento V Republica e pequenos partidos que até então integravam o Pólo Patriótico.
Transcorridos três anos, contava 7 253 691 inscritos. Esse gigantismo é negativo. Criado quase por decreto, o PSUV não pôde cumprir o papel de organização revolucionária. Funciona sobretudo como máquina eleitoral. A maioria dos filiados inscreveu-se por oportunismo.
Aliás, a exigência de que todos os partidos que apoiam a Revolução se dissolvessem, impediu a integração no PSUV do Partido Comunista da Venezuela que se distancia do chamado Socialismo do Século XXI, a ideologia do governo Bolivariano.

RUMO À DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
O Governo empenha-se em criar condições para uma autêntica democracia participativa.
As Bases Programáticas do PSUV apontam o caminho:
"A tarefa central da Revolução Bolivariana é desmontar o poder constituído ao serviço da burguesia e do imperialismo e refundar um poder radicalmente diferente ao serviço do povo venezuelano e dos demais povos do mundo, isto é, a construção do poder popular e revolucionário. Todas as tarefas públicas estão orientadas para a sua consolidação como única garantia da vitória definitiva da Revolução Bolivariana".
Para promover a participação e transferir progressivamente para o povo funções tradicionalmente desempenhadas pelo Estado, o governo criou as Missões Sociais. Destas as principais são a Missão Zamora, a Missão Che Guevara e a Gran Mision Vivienda (habitação).
O objectivo da primeira é a erradicação do latifúndio e a entrega de terras expropriadas aos camponeses.
Chavez tem consciência da importância da soberania alimentar. A Venezuela é na América Latina o país que mais depende da importação de produtos agro-pecuários. De um total de 95% das terras com aptidão agrícola apenas 4,2% eram cultivadas no início da revolução. O avanço da Reforma Agrária (Lei de Terras e do Desenvolvimento Agrícola) tem sido, porém, muito lento. Quase 30% dos camponeses eram analfabetos e a entrega de máquinas agrícolas, fertilizantes e pesticidas aos trabalhadores que receberam terras foi insuficiente, tal como o apoio de agrónomos e veterinários.
A Missão Che Guevara é um programa para a formação dos construtores do novo modelo produtivo. Segundo o Ministério do Poder Popular para a Economia Nacional, essa Missão tem por objectivo formar cidadãos "com valores socialistas que integrem o ético, o ideológico, o político e o técnico produtivo, contribuindo para gerar o maior nível de satisfação social e transformar o sistema socioeconómico capitalista num modelo económico socialista comunal".
A Gran Mision Vivienda, a mais dinâmica, já criou centenas de comunidades, algumas quais são pequenas cidades onde uma vida comunal se desenvolve em ruptura com a mundividencia capitalista.
Maqueta da nova cidade.Tivemos a oportunidade de visitar o projecto urbanístico cidade Fabrício Ojeda, na margem oriental do Lago Maracaibo, no estado Zulia, ainda em construção, no âmbito de um acordo bilateral com a Republica Islâmica do Irão.
Mas foi em Maturin, no Estado de Monagas, que durante horas convivemos com os moradores das comunidades "Casas Chinas" e da "Gran Victoria", ambas já habitadas.
A primeira, de casas modestas de um piso, subiu da terra em regime de auto-construção, tendo sido fornecido aos seus moradores o projecto e os materiais de construção.
A comunidade Gran Vitoria é uma pequena cidade com 2500 habitantes, também construída sob a direcção de engenheiros e técnicos iranianos. Ali o visitante mergulha num mundo não imaginado em Portugal.
Os apartamentos foram entregues semi-equipados aos seus moradores. A renda depende das condições económicas de cada família e é quase simbólica. Cada edifício tem quatro pisos de quatro apartamentos e cada bloco de quatro prédios constitui uma comuna responsável pela propriedade colectiva. Visitamos casas do tipo T2 e T3, atribuídas a famílias conforme a composição do seu agregado.
Os equipamentos sociais da Gran Victoria incluem escolas, creches, centro de saúde, farmácia, campo desportivo, salas comunitárias, quartel de bombeiros, igreja e uma grande loja da Missão Mercal em que os produtos são vendidos a preços subsidiados. No complexo funcionam 17 conselhos comunais.
Foi numa das escolas que mantivemos um prolongado encontro com uma centena de moradores. Ouvimos uma deputada do Estado, uma escritora, professores, mães de família, trabalhadores falarem sem inibições das suas vidas antes da conquista da Presidência por Chavez e da transformação que para todos representou a integração na Gran Victoria. Em palavras simples, esforçaram-se para nos ajudar a compreender a complexidade da revolução das existências individuais no âmbito da comunidade, cimento e alavanca do projecto Bolivariano. A alegria de viver transparecia das suas intervenções.
Mercado popular.Em Maturin coincidimos com a realização num quartel de um mega "mercado popular" em que são vendidos à população alimentos a preço justo, iniciativa que é promovida todos os meses em estados diferentes. Estão também presentes representantes de diversas instituições estatais, como um tribunal arbitral, uma comissão de direitos das mulheres, balcões para renovação de documentos, etc., ou seja uma pequena loja do cidadão ao ar livre.
Naquele dia o Programa "A Minha Casa Bem Equipada" permitia à população adquirir electrodomésticos a crédito, a preços entre 40 a 70% mais baixos que os de mercado. Esta iniciativa do Governo Bolivariano, coordenada com o sistema financeiro público, permite a cada família a abertura de um financiamento para aquisição de frigoríficos, fogões, máquinas de lavar roupa, televisores ou aparelhos de ar condicionado, a pagar em suaves prestações.
Uma parte dos compradores vive de um subsídio depositado pelo Estado numa conta nominal. Essa ajuda, equivalente em Portugal ao rendimento mínimo, é em média de 1200 bolívares (230 euros ao cambio oficial). Dependendo da idade, recebem por cada filho até 400 bolívares. Uma mãe com quatro filhos pode, somando o rendimento mínimo ao subsídio, atingir os 2400 bolívares mensais (430 euros). Essa modalidade de assistencialismo é fonte de críticas porque familas de desempregados dispõem de um rendimento mensal superior ao salário mínimo de 1800 bolívares (322 euros).

AMANHÃ IMPREVISIVEL
O contraste em cidades como Maturin (500 mil habitantes) e a capital é transparente.
Em Caracas o forasteiro mergulha numa atmosfera que pouco difere da irradiada por outras megalopolis latino americanas. Mais de metade dos 5 milhões de habitantes da Grande Caracas vive em bairros degradados nos morros que envolvem a cidade. A desigualdade social é maior do que a existente em Bogotá ou Buenos Aires. A grande burguesia está instalada no Country Club e noutros bairros que são guetos de luxo inacessíveis à população.
Caracas exibe para o visitante a imagem do capitalismo selvagem e não a de uma sociedade rumo ao socialismo. Uma surpresa: a Venezuela tem o maior número de smartphones BlackBerry do mundo.
Não conheço na América outra capital com contradições similares. Encher o depósito do carro de gasolina custa o equivalente a 30 cêntimos do euro, menos do que uma garrafa de água mineral.
O tráfego é caótico com engarrafamentos que paralisam o trânsito durante horas. Na véspera do nosso regresso, uma chuva torrencial provocou o encerramento do metro e da auto-estrada que conduz ao aeroporto.
Lenine, após a vitória da Revolução de Outubro, afirmou que a tarefa da transição para o socialismo das sociedades russa era infinitamente mais difícil do que fora a conquista do poder pelo Partido Bolchevique. É oportuno lembrar que teve de dissolver a Assembleia Constituinte porque as forças da oposição obtiveram a maioria nas eleições que o Partido convocou.
A advertência é valida para a Venezuela Bolivariana. O discurso sobre a transição do capitalismo para o socialismo não move o carro da História. Esse é o tema de um artigo que será a conclusão natural deste.

15/Dezembro/2011

(1) Victor Alvarez R., Del Estado burocrático al Estado Comunal, página 198, Editorial Horizonte, Barquisimeto, Venezuela, Novembro de 2010

(2) Os números citados, com excepção dos referentes ao PSUV, constam dos Informes económicos do Banco Central da Venezuela.

O original encontra-se em http://www.odiario.info/?p=2307

O agronegócio recebe licença para desmatar


Resumo Latinoamericano/Marcha
Uma lei aprovada no Senado brasileiro diminui a área de preservação das zonas florestais na Amazônia e anistia os grandes produtores rurais que já desmataram. Contudo, o novo Código Florestal aguarda a segunda aprovação da Câmara dos Deputados e a sanção da presidenta Dilma Rousseff.
A aprovação do Senado, em 6 de dezembro, ainda que não tenha causado surpresa, foi duramente criticada pelos movimentos sociais e ambientalistas. Os ativistas e militantes afirmam que o código serve aos interesses dos grandes produtores rurais e das transnacionais do setor agroexportador, permitindo um avanço, sem precedentes, da agropecuária na Floresta Amazônica.
Para eles, o projeto irá afetar profundamente o bioma amazônico, aumentando o desmatamento, a emissão de gases de efeito estufa, a desertificação do solo e, também, alterando o regime de chuvas, o que afetará o volume de água nos rios.
Também mencionam outras conhecidas consequências vinculadas ao modelo do agronegócio, como o aumento da concentração da terra, do monocultivo de espécies transgênicas, da superexploração da mão de obra e da violência no campo, além do aumento do uso de agrotóxicos. Hoje, o Brasil é o país que mais consome agroquímicos no mundo, segundo um estudo publicado em 2009 pela consultoria alemã Kleffmann Group.

Compra de votos
Dentro das duas casas do Congresso brasileiro, o texto foi aprovado com ampla vantagem de votos. No Senado, foram 58 votos a favor e 8 contra. Na Câmara, o projeto foi votado em maio e obteve 410 votos a favor e 63 contra. A maioria dos partidos tradicionais da direita apóia o novo Código. A base governista do Partido dos Trabalhadores (PT) no Congresso também está a favor da reforma. Entre eles, Aldo Rebelo, deputado pelo Partido Comunista do Brasil (PC do B), foi relator do Código na Câmara.
Além do conservadorismo, os parlamentares podem ter outras influências. Dias depois da votação no Senado, o jornal Folha de S. Paulo publicou uma reportagem na qual afirma que o novo código anistia dívidas geradas por multas relativas aos crimes ambientais, cometidos por empresas que financiaram a campanha eleitoral de 50 parlamentares nos comícios de 2010. No total, 15 milhões de reais foram destinados a esses congressistas, valor 42% superior à soma doada pelas mesmas empresas nas eleições de 2006. A reforma do código começou a ser discutida no Congresso em 2009. As empresas que mais doaram estão vinculadas à produção de celulose.
O Código Florestal foi criado em 1934, durante o governo de Getúlio Vargas. Em 1965, durante a ditadura civil-militar no Brasil foi reformado pela primeira vez. Com o aumento progressivo da devastação nas últimas décadas, muitos ambientalistas defendiam uma reforma no código, no sentido de fortalecer a preservação dos biomas brasileiros, como a Amazônia e o Cerrado. Ao invés disso, o setor vinculado ao agronegócio passou a defender uma reforma no sentido contrário.
Na lei de 1965 existia a obrigação, entre outras coisas, de preservar 80% dos terrenos situados na Amazônia, a zona com maior biodiversidade do planeta. O novo Código Florestal reduz a área que deve ser conservada para 50%, chegando, em alguns casos, a 20%. Nas chamadas Áreas de Preservação Permanente (APPs) – colinas e margens de rios, por exemplo – que antes não podiam ser exploradas, agora podem ser usadas para determinados cultivos.

Tragédia ambiental
Outro ponto polêmico é que proprietários, cujas terras estejam dentro de um limite de 400 hectares, serão anistiados no caso de terem cometido desmatamentos e não terão que realizar projetos de reflorestamento. Segundo estudo publicado pelo Instituto de Investigação Econômica Aplicada (Ipea, sigla em português), órgão vinculado à presidência da República, com essa medida deixará de ser recuperada uma área de 47 milhões de hectares, equivalente à soma dos territórios das províncias de Buenos Aires e Santa Fé.
Conforme outra investigação do Instituto de Investigação Ambiental da Amazônia, a flexibilização do desmatamento nas chamadas APPs, permite que uma área equivalente a duas províncias de Santa Cruz possam ser devastadas.
Além disso, a nova lei também permite que donos de terrenos de qualquer tamanho, que tenham desmatado até 2008, sejam anistiados das multas se realizarem projetos de reflorestamento. O projeto não precisa ser necessariamente feito em sua propriedade, mas também no terreno de terceiros. Basta que se compre um título negociado na Bolsa de Valores, por meio das Cotas de Reservas Ambientais. “Isso transformará a floresta numa commoditie”, explicou a advogada Larissa Ambrosano, da organização da Terra de Direitos, em nota publicada na página do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). “Saem dois órgãos de fiscalização e entra o mercado de florestas, com a conservação sendo realizada pelo pagamento financeiro”.
A nova aprovação na Câmara deve ocorrer somente no ano que vem. Os movimentos analisam que a batalha no Congresso já foi perdida e prometem pressionar a presidenta para que não sancione a lei.

Tradução: Maria Fernanda M. Scelza (PCB)

Intervenção do PCB no XIII Encontro Mundial dos Partidos Comunistas e Operários

Esta é a intervenção do PCB, através do seu Secretário Geral, Ivan Pinheiro, no XIII Encontro Mundial de Partidos Comunistas, que reúne 82 partidos de todos os continentes, em Atenas (Grécia), sobre a conjuntura mundial e as perspectivas do socialismo.

Intervenção do PCB no XIII Encontro Mundial dos Partidos Comunistas e Operários

O Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB) saúda os partidos comunistas presentes, homenageando o anfitrião, o Partido Comunista Grego, referência para todos os revolucionários e trabalhadores do mundo, com seu exemplo de luta sem tréguas contra o capital.
O aprofundamento da crise sistêmica do capitalismo coloca para o movimento comunista internacional um conjunto de complexos desafios.
Estamos diante de um estado de guerra permanente contra os trabalhadores,  uma espécie de “guerra mundial”, na qual o grande capital busca sair da crise colocando o ônus na conta dos trabalhadores. Esta é uma guerra diferente das anteriores, que tinham como centro disputas interimperialistas.
Apesar de persistirem contradições interburguesas e interimperialistas na atual conjuntura, as grandes potências (sobretudo os Estados Unidos e os países hegemônicos da União Européia) promovem hoje uma guerra de rapina contra todos os países periféricos, sobretudo aqueles que dispõem de riquezas naturais não renováveis e contra todos os trabalhadores do mundo.
A guerra é o principal recurso do capitalismo para tentar sair da crise: ativa a indústria bélica e ramos conexos, permite o saque das riquezas nacionais e a queima de capitais; os capitalistas ganham também com a indústria da reconstrução dos países destruídos.
Em meio à simultânea ocupação e destruição de diversos países nos últimos anos (Iraque, Afeganistão, Líbia), já começam a preparar as próximas agressões: a Síria e o Irã se destacam na atual fila. Todos os países vítimas são criteriosamente escolhidos segundo objetivos estratégicos hegemonistas.
Os métodos são sempre os mesmos: satanização, manipulação, estímulo ao sectarismo e a divisões entre nacionalidades, cooptações, criação ou supervalorização midiática de manifestações e rebeldias, atentados de falsa bandeira.
Daqui a algum tempo, poderemos estar diante de uma invasão de um país que, no dia de hoje, pareça-nos improvável.
Na guerra permanente, pelo menos nesta fase, têm sido poupados os chamados países emergentes, sócios minoritários do imperialismo, que legitimam a política das grandes potências, compondo, como atores coadjuvantes, o chamado Grupo dos 20. Seus mandatários aparecem na fotografia que simboliza o consenso entre os parceiros, mas as grandes decisões são tomadas em fóruns reservados, de que nunca se tem notícia.
Estes países emergentes (os chamados BRICS) se têm beneficiado da crise, na medida em que ajudam a superá-la; em seguida, poderão ser as próximas vítimas tanto da crise como de agressões militares. Fazem o jogo de linha auxiliar do imperialismo, como na omissão vergonhosa em relação à invasão da Líbia. Só levantam a voz quando algum interesse nacional é ameaçado. Caso contrário, lavam as mãos.
Em nosso país, nunca os banqueiros, as empreiteiras, o agronegócio e os monopólios tiveram tanto lucro. A política econômica e a política externa do estado brasileiro estão a serviço do projeto de fazer do Brasil uma grande potência capitalista internacional, nos marcos do imperialismo. As empresas multinacionais de origem brasileira, alavancadas por financiamentos públicos, já dominam alguns mercados em outros países, notadamente na América Latina.
Já a guerra contra os trabalhadores independe da classificação do país. É levada a efeito nas grandes potências, nos países emergentes e nos periféricos.
Em meio a esta grave crise e sem a consolidação ainda de um importante pólo de resistência proletária, o capital  realiza uma violenta ofensiva para retirar dos trabalhadores os poucos direitos que lhes restam. Para fazê-lo, tentam cada vez mais fascistizar as sociedades, criminalizar os movimentos políticos e sociais antagônicos à ordem. A correlação de forças ainda nos é desfavorável. Ainda sofremos o impacto da contra-revolução na União Soviética e da degeneração de muitos partidos ditos de esquerda e de setores do movimento sindical.
Analisando este quadro, o PCB tem feito algumas reflexões.
- A nosso juízo, não há mais espaço para ilusões reformistas. Aliás, os reformistas, mais do que nunca, são grandes inimigos da revolução socialista, pois iludem os trabalhadores e os desmobilizam, facilitando o trabalho do capital. Em cada país, as classes dominantes forjam um bipartidarismo – em verdade um monopartidarismo bicéfalo – em que as divergências, cada vez menores, se dão no campo da administração do capital. Como não conseguem gerenciar a crise, aqueles que fazem o papel de oposição de turno invariavelmente vencem as eleições seguintes. É o que chamam de “alternância de poder”.
- Perdem sentido projetos nacional-desenvolvimentistas, não só porque é impossível desligar as economias capitalistas locais da esfera do imperialismo como também porque há cada vez menos contradições entre este e o núcleo hegemônico das chamadas burguesias nacionais.
- Cada vez também faz menos sentido a “escolha” de aliados no campo imperialista e mesmo entre seus coadjuvantes emergentes, como se houvesse imperialismo do “bem” e do “mal”. A diferença é apenas na forma, não no conteúdo. Isto não significa subestimar as contradições que vicejam entre eles.
- Não podemos conciliar com ilusões de transição ao socialismo por vias fundamentalmente institucionais, através de maiorias parlamentares e de ocupação de espaços governamentais e estatais. O jogo da democracia burguesa é de cartas marcadas. A luta de massas, em todas as suas formas, adaptada às diferentes realidades locais, é e continuará sendo a única arma de que dispõe o proletariado.
- Por mais bem intencionados que sejam, correm risco de esgotamento político os processos de mudanças progressistas baseados em líderes populares carismáticos, se esses processos não avançarem na construção do duplo poder, na destruição gradual do estado burguês e na autodefesa popular e de massas.
Temos avaliado também que o atual modelo de encontros de partidos comunistas e operários, que vêm cumprindo importante papel de resistência, precisa se adaptar às complexas necessidades da conjuntura mundial, com suas perspectivas sombrias no curto prazo e suas possibilidades de acirramento da luta de classes, com a emergência das lutas operárias.
Pensamos que é preciso romper com o “encontrismo” em que, ao final dos eventos, nossos partidos decidem a sede do próximo encontro e se despedem até o ano seguinte, inclusive aqueles dos países da mesma região.
Para potencializar o protagonismo dos partidos comunistas e do proletariado no âmbito mundial, é necessária e urgente a constituição de uma coordenação política que, sem funcionar como uma nova internacional, tenha a tarefa de organizar campanhas mundiais e regionais de solidariedade, contribuir para o debate de ideias, socializar informações sobre as lutas dos povos.
Mas, para além da indispensável articulação dos comunistas, parece-nos importante a formação de uma frente mundial mais ampla, de caráter antiimperialista, onde cabem forças políticas e individualidades progressistas, que se identifiquem com as lutas em defesa da autodeterminação dos povos, da paz entre eles, da preservação do meio ambiente, das riquezas nacionais, dos direitos trabalhistas, sociais e políticos; contra as guerras imperialistas e a fascistização das sociedades. Em resumo, as lutas em defesa da humanidade.
Deixamos claro que o nosso Partido valoriza qualquer forma de luta. Não podemos cair no oportunismo de fazer vistas grossas ao direito dos povos à rebelião e à resistência armada. Em muitos casos, esta é a única forma de fazer frente à violência do capital e de superá-lo. Os povos só podem contar com sua própria força.
Neste marco, concluímos nossa intervenção saudando os povos que hoje enfrentam as mais duras batalhas. Saudamos os trabalhadores gregos e portugueses que já se levantam em greves nacionais e grandes jornadas e os demais trabalhadores da Europa, que enfrentam terríveis planos do capital para tentar superar a crise, hoje mais acentuada no continente europeu e que poderá agravar-se e espalhar-se para outros países e regiões.
Saudamos o povo palestino, em sua saga duradoura e dolorosa no enfrentamento ao sionismo que o sufoca e reprime, ocupa seu território, derruba suas casas, prende seus melhores filhos e impede seu direito a um Estado soberano.
Da mesma forma, saudamos os também sofridos povos do Iraque, do Afeganistão, da Líbia. Saudamos os povos do Egito, do Iêmen e de vários países árabes, em sua luta contra a tirania e a opressão.
Saudamos os sírios e iranianos, contra os quais já batem os tambores de guerra do imperialismo. Sua resistência pode barrar os planos do sinistro consórcio EUA/OTAN/Israel para o Oriente Médio, a África, a Ásia e o mundo em geral.
Chegando até nossa América Latina, saudamos nossa querida Cuba Socialista em sua luta contra o cruel bloqueio ianque. Saudamos nossos Cinco Heróis. Saudamos os processos de mudanças concretas na América do Sul (Venezuela, Bolívia e Equador), neste momento decisivo, uma encruzilhada entre o avanço dos processos ou sua derrota.
Saudamos o povo colombiano que, nas cidades e nas montanhas, resiste, através de variadas formas de luta, contra o estado terrorista de seu país, a grande base militar norte-americana na América Latina, um dos regimes mais sanguinários do mundo.
Concluímos nos associando à proposta de realização de nosso próximo encontro anual no Líbano, em pleno Oriente Médio, palco principal das guerras imperialistas neste período.
Desde já, reiteramos nossa proposta de criação de coordenações políticas internacionais e regionais dos Partidos Comunistas, tendo como princípio fundamental o internacionalismo proletário.

Atenas, 10 de dezembro de 2011
PCB – Partido Comunista Brasileiro

Movimentos Sociais ocupam a Paulista por terra, trabalho e moradia

Klaus Nunes Ficher*

No último dia 08 de dezembro, trabalhadores da Fábrica Ocupada Flaskô e militantes do Movimento dos Trablhadores Sem Teto (MTST) e do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) de Campinas realizaram um ato público na Avenida Paulista. Trabalhadores da cidade e do campo se uniram sob a égide de uma luta por terra, trabalho e moradia.
A manifestação se concentrou no vão do MASP e seguiu até o Escritório da Presidência da República em São Paulo, na região da Consolação, tingindo de vermelho o cartão postal da cidade. Os manifestantes ocuparam 3 andares do edifício até serem recebidos pela secretaria para apresentar suas reivindicações.
No período da tarde houve o lançamento da campanha "Sem Teto Com Vida" na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo. A campanha visa denunciar as persiguições e a criminalização que os movimentos populares sofrem no país hoje.
Vários militantes do Partido Comunista Brasileiro do estado de São Paulo estiveram presentes no ato, construindo a manifestação, se somando aos trabalhadores na luta. A delegação do PCB contou com camaradas das cidades de Campinas e Marília, além de militantes da capital.

*Membro do Comitê Regional do PCB-SP

6 de dezembro de 2011

Avançar na luta contra o capitalismo e construir a Revolução Socialista no Brasil!  -  Declaração Política do PCB  - Conferência Política Nacional

Avançar na luta contra o capitalismo e construir a Revolução Socialista no Brasil! - Declaração Política do PCB - Conferência Política Nacional

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Crédito: PCB
Declaração Política do PCB

(Conferência Política Nacional – Rio de Janeiro, 12 e 13 de novembro 2011)

Os comunistas do PCB, reunidos na Conferência Política Nacional, realizada no Rio de Janeiro, nos dias 11 e 12 de novembro de 2011, avaliam que a crise sistêmica do capitalismo é profunda e devastadora. Esta crise revela não apenas os efeitos nefastos das políticas econômicas neoliberais vigentes nas últimas décadas em todo o mundo – deixando um rastro de desemprego, perda de direitos sociais e desesperança para a imensa maioria dos trabalhadores – mas a própria natureza do sistema – excludente, concentradora de renda e riqueza, destruidora do planeta, geradora de guerras e promotora do incentivo à exploração do Homem pelo Homem. Mais uma vez, abre-se o horizonte para a única alternativa capaz de garantir a sobrevivência da humanidade e do planeta: o socialismo, na perspectiva do comunismo.

A crise sistêmica do capitalismo confirma as tendências de centralização do capital no plano mundial. Com um número cada vez menor de grandes grupos conglomerados dominando a maior parte da economia internacional, a burguesia busca sair da crise com o recrudescimento da exploração dos trabalhadores. A fim de manter seus lucros, os capitalistas aprofundam a precarização das condições de trabalho e reduzem os salários, ao mesmo tempo em que se verifica um processo crescente de proletarização dos trabalhadores assalariados das camadas médias e do campesinato, pois a ação do capital dirige-se para a formação de novos e amplos contingentes de trabalhadores “livres” para vender barato e de forma precária a sua força de trabalho.

No plano político, governos seguem dando suporte ao grande aparato empresarial e suas demandas, com a transferência de gigantescos recursos financeiros do setor público para “salvar” bancos e indústrias ameaçadas e a promoção de cortes orçamentários nas áreas sociais, demissões de funcionários públicos e a retirada de direitos dos trabalhadores em geral, demonstrando enorme desprezo às crescentes manifestações de oposição e de contestação que vêm ocorrendo por toda parte.

A crise econômica e as diversas manifestações e mobilizações dos trabalhadores levam os governos burgueses de vários países ao limite de sua viabilidade de sustentação, como nos casos da Grécia, da Itália, Portugal, Espanha e outros, cujas políticas de arrocho e cortes orçamentários encontram cada vez maior resistência da parte das populações espoliadas, como no caso dos Estados Unidos.

A própria União Européia vem perdendo substância política e econômica, com o enfraquecimento da zona do Euro. A União Européia vem enfrentando disputas políticas internas e há uma perspectiva real de fragmentação da zona do Euro, o que, somado ao processo de pauperização da periferia européia, enfraquece e ameaça o projeto original burguês da Unificação Européia, cuja legitimidade de representação está em crise.

O imperialismo segue ameaçando a continuidade da existência da humanidade. Depois de ocuparem o Iraque e o Afeganistão, os Estados Unidos e a OTAN invadiram covardemente a Líbia e agora ameaçam a Síria, o Líbano e o Irã, ao passo que Israel segue matando, prendendo e expulsando palestinos de suas terras.

A instalação de mais bases militares na Colômbia e o apoio aberto ao governo terrorista de Santos, a presença ostensiva da CIA no Paraguai e em outros países da América Latina, a reativação da IV Frota, o golpe em Honduras e outras ações evidenciam a investida dos EUA na América Latina, visando garantir a perpetuação de seus interesses, no contraponto às experiências de caráter democrático-popular e anti-imperialista dos movimentos e governos na Venezuela, Bolívia, Equador, assim como à continuidade da revolução socialista em Cuba.

Entre as muitas formas de contraposição e manifestação popular contra os efeitos nefastos da crise econômica e do próprio sistema capitalista, espalham-se pelo mundo os protestos dos chamados movimentos dos indignados, que se apresentam com diferentes conformações e bases sociais nos diversos países onde vêm surgindo. Este é, sem dúvida, um bom sinal do potencial de resistência dos trabalhadores à exploração, mas é preocupante a ausência, na maioria dos casos, de uma direção consequente e de representações sindicais e partidárias no sentido da organização dos trabalhadores e da luta radical pela ruptura com o capitalismo e o poder burguês.

O capitalismo brasileiro, vivendo a fase monopolista e plenamente associado aos capitais mundiais e ao imperialismo, mesmo que de forma subordinada, consolida seu processo de integração internacional, com a expansão de grandes empresas multinacionais de matriz brasileira, principalmente na América Latina. Por isso mesmo e em virtude das políticas governamentais de proteção ao capital e ao mercado nacionais, os efeitos da crise mundial até agora não foram sentidos de forma impactante. Mas é fato que o Brasil não está imune a ela, nem mesmo no curto prazo, conforme indica o aumento da carestia e do arrocho salarial para os trabalhadores de muitos setores da economia, o crescimento recente do desemprego nos setores metalúrgico e têxtil, havendo ainda previsão de freio na produção industrial e de novas demissões futuras.

Ainda que tenha ocorrido, na última década, certo crescimento da economia – inferior aos padrões das décadas de 1950 e 70 –, apresenta-se no Brasil um quadro de alarmante desigualdade social, grande concentração de renda e de propriedade, de exclusão da maioria da população dos direitos sociais. Na área econômica, a presidente Dilma mantém o favorecimento aos bancos e às grandes empresas, não tendo sido operada, desde o início do governo Lula, qualquer reversão das privatizações e das práticas de flexibilização dos direitos trabalhistas e sociais realizadas nos governos FHC.

Muito pelo contrário, verifica-se o aprofundamento da mercantilização da saúde, com a terceirização dos serviços, em vários estados, em favor das Organizações Sociais (OS) e outras formas de privatização, transformando o direito à saúde pública, historicamente conquistado, em mera mercadoria. De igual forma, ocorre progressivamente o desmonte da previdência pública e de inúmeros direitos sociais, como o acesso à Educação, cada vez mais restrito em função do sucateamento da escola pública.

Todo este quadro demonstra a opção feita pelo governo Dilma, de prosseguir na tentativa de transformar o Brasil numa potência capitalista e mesmo imperialista, para o que as ações governistas voltam-se a facilitar a expansão do capital financeiro e industrial monopolista interna e externamente, ao passo que, para os trabalhadores e camadas populares, além das políticas compensatórias para os mais pobres, reserva-se apenas a perspectiva de maior acesso ao mercado de bens de consumo com o prometido crescimento econômico do país, sem que seja minimamente alterada a estrutura desigual e concentradora da sociedade brasileira.

Vivemos sob a hegemonia acachapante dos valores burgueses, uma hegemonia que se sustenta – para além da enorme pressão da grande mídia capitalista – pela base material criada com a relativa expansão na oferta de empregos extremamente precarizados e pelo incentivo ao consumo via facilitação do crédito, mesmo para as camadas de baixa renda, uma hegemonia que induz à acomodação, desestimulando a luta e dificultando a organização dos trabalhadores.

Entre muitos outros mecanismos, como a ação da grande mídia, esta hegemonia conservadora é respaldada por forças políticas reformistas que dão sustentação ao governo, inclusive através de organizações sindicais e sociais cooptadas e degeneradas. Muitas Ongs e movimentos que se apresentam como “apartidários”, dedicados a lutas parciais e específicas, são também reprodutores desta hegemonia, contribuindo para a elevação do grau de alienação das massas e dificultando a eclosão de movimentos populares claramente anticapitalistas e com disposição para caminhar no rumo da alternativa socialista.

Em que pese o quadro político desfavorável, os trabalhadores brasileiros resistem à exploração de diversas formas. Neste ano eclodiram em todo o país greves e manifestações populares, com destaque para a paralisação dos operários nos canteiros das obras do PAC, a luta dos bombeiros no Rio, dos professores em oito estados, metalúrgicos, bancários, trabalhadores dos correios, profissionais da saúde e outras áreas.

Além disso, ressurgem com força vários movimentos de caráter comunitário e de lutas gerais em defesa da terra, moradia, do meio ambiente e outras. Tais ações evidenciam certa retomada do sindicalismo e dos movimentos populares, que reassumem gradativamente papel de destaque no cenário político nacional.

Reunido em sua Conferência Política Nacional, o Partido Comunista Brasileiro, em seu processo de reconstrução revolucionária e à luz do entendimento do caráter socialista da Revolução brasileira, defende que somente a unidade das forças revolucionárias, a organização e o aprofundamento da consciência de classe dos trabalhadores farão avançar a luta anticapitalista e a construção da alternativa socialista no Brasil. Uma frente de esquerda não pode ser apenas uma coligação eleitoral. Tem que ser uma frente política permanente, forjada na unidade de ação, no movimento sindical, nas lutas populares e na solidariedade internacional, voltada ao combate ativo às ações da burguesia e do imperialismo.

É preciso avançar na organização da luta sindical – com a recomposição do campo original da Intersindical e sua ampliação –, dos trabalhadores da cidade e do campo, das lutas da juventude, das mulheres, das camadas populares, da solidariedade internacionalista. Reafirmamos a proposta de formação de uma Frente Anticapitalista e Anti-imperialista e a constituição, nas experiências cotidianas das lutas dos trabalhadores e das forças populares, do Poder Popular, buscando forjar, desde agora, o caminho da Revolução Socialista no Brasil.

Conferência Política Nacional do PCB

Novembro de 2011
Oposição social na era da Internet: Militantes "de teclado" e intelectuais públicos

Oposição social na era da Internet: Militantes "de teclado" e intelectuais públicos

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Crédito: world-citizenship

por James Petras*

A relação entre as tecnologias da informação, e mais precisamente a internet, com a política é uma questão central para os movimentos sociais contemporâneos. Tal como outros avanços tecnológicos no passado, as tecnologias da informação (TI) servem um duplo propósito: por um lado contribuem para acelerar os movimentos de capitais (sobretudo de capitais financeiros), facilitando uma globalização imperialista. Por outro, a internet fornece importantes fontes alternativas de análise, assim como uma forma fácil de comunicação, que pode servir para a mobilização dos movimentos populares.

A indústria das tecnologias da informação criou uma nova classe de multimilionários, que se estende de Silicon Valey na Califórnia até Bangalore na Índia. Estes desempenham um papel central na expansão do colonialismo econômico através do controlo monopolista que exercem sobre as mais diversas esferas de difusão da informação e do entretenimento.

Parafraseando Marx: "a internet tornou-se o ópio do povo". Novos e velhos, empregados e desempregados, todos eles passam horas passivamente contemplando espetáculos, pornografia, video-jogos, consumindo online e até acedendo a "notícias", isolados dos restantes cidadãos e trabalhadores.

Em muitas ocasiões, a superabundância de "notícias" na internet, absorve tempo e energia, desviando os "observadores" da reflexão e da ação propriamente dita. Assim como a escassa e tendenciosa informação dos meios de comunicação de massas distorce a consciência popular, o excesso de mensagens na internet pode imobilizar a ação dos cidadãos.

A internet, propositadamente ou não, "privatizou\particularizou" a vida política. Muitos ativistas potenciais foram levados a acreditar que o envio de manifestos a outros cidadãos é um ato político, esquecendo-se que apenas a ação pública, incluindo a confrontação com os seus adversários no espaço público, nos centros das cidades assim como no campo, é a base da transformação política.

As tecnologias da informação e o capital financeiro

Recordemos que o ímpeto original que presidiu ao crescimento das tecnologias da informação partiu das necessidades das grandes instituições financeiras, bancos de investimento e dos especuladores, que pretendiam mover milhares de milhões de dólares, de um país para o outro, de uma empresa para outra, de uma mercadoria para outra, com um simples toque de dedos.

A Internet foi a tecnologia motora do crescimento da globalização ao serviço do capital. As tecnologias da Informação desempenharam um papel central na precipitação das duas crises financeiras da última década (2001-2002; 2008-2009). A bolha das ações de empresas ligadas às tecnologias da informação em 2001 foi o resultado da promoção e da sobrevalorização das empresas de software, desligadas da economia real. O crash financeiro global de 2008-2009, que se estende até hoje, foi consequência de pacotes computadorizados de ativos fraudulentos e de empréstimos imobiliários sub-financiados. As "virtudes" da internet, a velocidade com que transmite informação, revelaram-se, no contexto da especulação capitalista, um fator determinante da pior crise do capitalismo desde a Grande Depressão dos anos 30.

A democratização da Internet

A internet tornou-se acessível às massas enquanto mercado aberto à exploração comercial, alargando-se posteriormente a usos sociais e políticos, e, mais importante ainda: tornou-se um meio fundamental para informar o grande público da exploração e pilhagem que os bancos multinacionais impunham aos mais variados países e aos seus habitantes. A internet ajudou também a expor as mentiras que subjazem às guerras imperialistas dos Estados Unidos e da União Europeia no Médio-Oriente e no Sul da Ásia.

A internet transformou assim num terreno contestado, numa nova forma de luta de classes, que engloba movimentos pró-democracia e de libertação nacional. Os maiores movimentos e os seus líderes, desde os guerrilheiros no Afeganistão aos ativistas pró-democracia no Egito, passando pelo movimento estudantil chileno e pelo movimento pela habitação popular na Turquia, todos eles contam com a internet para informar o mundo das suas lutas, dos seus programas, da repressão estatal de que são alvos, bem como das suas vitórias. A internet liga as diferentes lutas muito para lá das fronteiras nacionais – é uma ferramenta central para a construção de um novo internacionalismo que faça face à globalização capitalista e às suas guerras imperialistas.

Parafraseando Lenine poderíamos dizer que o socialismo do século XXI pode resumir-se na formula: "os sovietes mais a internet = socialismo participativo"

A internet e a política de classe

É bom recordar que as tecnologias computorizadas de informação não são "neutrais" – o seu impacto político depende dos utilizadores e ativistas que determinam quem, e que interesses de classe, é que servem.

A internet serviu para mobilizar milhares de trabalhadores na China contra os exploradores corporativistas, na Índia mobilizou milhares de camponeses contra os especuladores latifundiários. Por outro lado, a Otan utilizou sistemas de guerra fortemente computorizados para bombardear e destruir a Líbia independente. Os Estados-Unidos também utilizaram "drones" para enviar mísseis para matar civis no Paquistão e no Yémen; ora esta técnica é controlada por uma inteligência computorizada. A localização da guerrilha colombiana e os bombardeamentos aéreos utilizam a mesma tecnologia computorizada. Em suma, as tecnologias da informação podem ter um duplo uso: podem ser utilizadas para a libertação dos povos, mas também podem servir os ataques imperialistas contra-revolucionários.

O neoliberalismo e o espaço público

A discussão acerca do "espaço público" assume frequentemente que "público" é sinônimo de uma maior intervenção estatal em prol do bem-estar da maioria: de uma maior regulação do capitalismo e de uma crescente proteção do meio-ambiente. Por outras palavras aos atores "públicos" benignos opor-se-iam às forças privadas exploradoras dos mercados.

Num contexto de proliferação da ideologia e das políticas neoliberais, muitos autores progressistas escrevem sobre "o declínio da esfera pública". Esta perspectiva negligencia o fato de a "esfera pública" ter vindo a ganhar uma importância crescente na sociedade, na política e na economia, beneficiando sempre o grande capital, mais concretamente o capital financeiro e os investidores estrangeiros. A "esfera pública", neste caso o estado, é muito mais intrusiva na sociedade civil como força repressiva num momento em que as políticas neoliberais aumentam as desigualdades. Graças à intensificação e ao aprofundamento das crises financeiras, a esfera pública (o estado) assumiu um papel fundamental no resgate dos bancos falidos.

Devido aos enormes déficits fiscais provocados pela fuga aos impostos do capital, às despesas com as guerras coloniais e aos subsídios públicos às grandes empresas, a esfera pública (o estado) impõe uma austeridade de classe, cortando as despesas sociais e prejudicando os funcionários públicos, os reformados e os trabalhadores assalariados do privado.

A esfera pública reduziu o seu papel no sector produtivo da economia. No entanto, o sector militar cresceu com a expansão das guerras coloniais e imperialistas.

A questão fundamental que subjaz a qualquer discussão acerca da esfera pública e da oposição social não é a do seu crescimento ou declínio, mas antes a dos interesses de classe que definem o papel dessa esfera pública. No contexto do neoliberalismo, a esfera pública está orientada para a utilização do tesouro público no resgate dos bancos, para o militarismo e para uma larga intervenção policial estatal. Uma esfera pública dirigida pela "oposição social" (trabalhadores, agricultores, profissionais, empregados) alargaria o campo de ação da esfera publica no que toca à saúde, à educação, às pensões, ao ambiente e ao emprego.

O conceito de "esfera pública" tem duas faces (como Jano): uma olha para o capital e para o sector militar; a outra para a oposição laboral/social. A internet está também subordinada a esta dualidade: por um lado, facilita grandes movimentos do capital e rápidas intervenções militares imperialistas; por outro, fornece à oposição social um fluxo de informação rápido que permite a sua mobilização. A questão fundamental é a de saber que tipo de informação é transmitida, a que atores políticos ela é transmitida e que interesse social serve?

A Internet e a oposição social: a ameaça da repressão estatal

Para a oposição social, a internet é antes de mais uma fonte vital de informação alternativa crítica, capaz de educar e mobilizar os dirigentes progressistas, os profissionais, os sindicalistas e os líderes camponeses, os militantes e os ativistas. A internet é uma alternativa aos meios de comunicação capitalistas e à sua propaganda, uma fonte de notícias e informações que transmite manifestos e informa os ativistas acerca dos locais das intervenções públicas. Graças a este papel progressista como instrumento da oposição social, a internet está sujeita a uma forte vigilância por parte do aparelho repressivo policial e estatal. Nos Estados Unidos, por exemplo, mais de 800 mil funcionários são utilizados pela policia de "Segurança Interna" para espiar milhares de milhões de emails, faxes e chamadas telefônicas de milhões de cidadãos americanos. Saber quão efetivo é o policiamento diário de toneladas de informação é outra questão. Mas o fato é que a internet não é uma "fonte livre e segura de informação, debate e discussão". Com efeito, quanto mais eficaz se torna a internet na mobilização de movimentos sociais que se opõem ao estado imperialista e colonial, mais provável se torna uma intervenção por parte da polícia e do estado com o pretexto de "combater o terrorismo".

A internet e a luta contemporânea: uma relação revolucionária?

É tão importante reconhecer a importância da internet enquanto detonador de determinados movimentos sociais como relativizar a sua importância global.

A internet teve um papel fundamental na divulgação e mobilização de "movimentos espontâneos", como o dos "indignados" espanhóis, na sua maioria jovens desempregados e sem filiação partidária, ou na americana "Ocupação de Wall Street". Noutros casos, como o das massivas greves gerais em Itália, Portugal, na Grécia e em tantos outros sítios, as confederação sindicais organizadas tiveram um papel central e a internet um impacto apenas secundário.

Em países altamente repressivos, como o Egito, a Tunísia e a China, a internet tem um papel fundamental na divulgação de intervenções públicas e na organização de protestos de massas. No entanto, a internet não levou a qualquer revolução bem sucedida – ela pode informar, ser um local de debate, e mesmo mobilizar, mas não pode oferecer a liderança e a organização necessárias a uma ação política consistente e muito menos fornecer uma estratégia de tomada do poder estatal. Comprova-se assim que a ilusão, alimentada por alguns gurus da internet, de que a ação "computadorizada" pode substituir um partido político disciplinado, é falsa: a internet pode facilitar o movimento, mas apenas uma oposição social organizada lhe pode dar uma direção tática e estratégica capaz de o manter vivo face à repressão do estado e de o levar a lutas bem sucedidas.

Ou seja, a internet não é um "fim em si mesmo" – a postura autocongratulatória dos ideólogos da internet, anunciando uma nova época de informação "revolucionária", ignora o fato de que OTAN, Israel e os seus aliados e clientes utilizam a internet para lançar vírus e destruir economias, para programas de defesa anti-sabotagem e para promover levantamentos etnico-religiosos. Israel enviou vírus danosos para travar o programa nuclear pacífico do Irão; os Estados Unidos, a França e a Turquia instigam, na Líbia e na Síria, uma oposição social capaz de servir os seus interesses. Em resumo, a internet tornou-se um novo terreno de luta de classes e de luta anti-imperialista. A internet é um meio e não um fim. A internet é parte dessa esfera pública, cujos objetivos e resultados são determinados pela estrutura de classe em que se integra.

Comentários finais: "militantes de teclado" e intelectuais públicos

A oposição social é definida pela intervenção pública: pela presença das coletividades nos comícios políticos, pelos indivíduos que discursam em encontros públicos, por ativistas que se manifestam em praças públicas, sindicalistas militantes que defrontam os patrões, pessoas pobres que exigem aos governantes locais para morar e serviços públicos...

Discursar ativamente num comício público, formular ideias e programas, propor estratégias através da ação política, constitui o papel de um intelectual público. Sentar-se a uma secretária num escritório para, num esplêndido isolamento, enviar cinco manifestos por minuto define um "militante de teclado". Esta é uma forma de pseudo-militância que separa as palavras dos atos. A "militância" de teclado é um ato de inação verbal, de "ativismo" inconsequente, uma revolução mental de faz-de-conta. A comunicação via internet torna-se um ato político quando se enquadra em movimentos sociais que desafiam o poder. Necessariamente, isto envolve riscos para um intelectual público: desde ataques policiais no espaço público até represálias econômicas na esfera privada. Os "ativistas de teclado" não arriscam nada e pouco realizam. O intelectual público faz a ligação entre o descontentamento dos indivíduos e o ativismo social da coletividade. O professor universitário vem ao local de ação, fala e regressa ao seu gabinete. O intelectual público fala e faz um compromisso pedagógico de longo termo com a oposição social na esfera pública, tanto através da internet como de frequentes encontros diários cara a cara.

20/Novembro/2011

[*] Intervenção como convidado no "Symposium on Re-Publicness", Patrocinado pela Chamber of Electrical Engineers. Ancara, Turquia, 9-10/Dezembro/2011

O original encontra-se em http://www.globalresearch.ca/index.php?context=va&aid=27761 . Tradução de MQ.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

"História Sumária do Racismo no Brasil"

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Crédito: 1.bp.blogspot
Mário Maestri

1. Constituição e Racionalização da Escravidão Clássica

A desqualificação dos oprimidos é recurso histórico, consciente e inconsciente, dos opressores para racionalizar e consolidar a exploração. Nas formas de produção pré-capitalistas, essa desqualificação centrou-se fortemente na natureza dos explorados. No clássico A origem da família, da propriedade privada e do Estado, de 1884, Frederico Engels assinalou a dominação da mulher pelo homem, no contexto da primitiva divisão sexual do trabalho, como a primeira forma geral de exploração. "[...] o primeiro antagonismo de classes que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher na monogamia; e a primeira opressão de classes, com a opressão do sexo feminino pelo masculino." A opressão da mulher ensejou e apoiou-se tradicionalmente na defesa de sua inferioridade, fortemente ancorada na sua diversidade fisiológica em relação ao homem. O magnífico Aristóteles apontava como exemplo da inferioridade feminina o fato de que a mulher teria menos dentes que os homens!

Base da produção na Grécia homérica, a escravidão patriarcal surgiu quando o produtor superou sistematicamente suas necessidades de subsistência, produzindo sistematicamente excedente capaz de ser apropriado pelo explorador. A orientação da produção para o consumo do núcleo familiar da pequena propriedade grega, de uns cinco ou pouco mais hectares [oikos], pôsrelativamente travas à exploração do homem e da mulher escravizados. Não havia sentido em produzir acima do consumido pelos proprietários, familiares, dependentes e cativos. No escravismo patriarcal, o proprietário, sua família e dependentes trabalhavam comumente ao lado do cativo, em proximidade que apenas minimizava o caráter despótico daquela relação social de produção.

Com a consolidação da propriedade privada sobre a terra e seus frutos e a expansão do mercado, a escravidão patriarcal desenvolveu-se e superou-se qualitativamente. Ainda que fossem numerosas as pequenas propriedades escravistas de subsistência, nos dois séculos finais da República e nos dois primeiros do Império, dominou social e economicamente a pequena propriedade escravista pequeno-mercantil especializada. Orientada essencialmente para o mercado, a villa tinha em torno de uns dez a trezentos hectares e trabalhava com algumas poucas dezenas de cativos. A dimensão reativamente restrita e o caráter dos seus produtos, que exigiam comumente trabalho intensivo, especializado e sazonal, impediram tendencialmente a degradação das condições do trabalho conhecida séculos mais tarde na escravidão colonial americana. Era monótona e dura a existência do produtor escravizado nessas propriedades..

Por variadas razões, fracassou a evolução da produção pequeno-mercantil em escravismo mercantil, ou seja, em grandes propriedades trabalhadas por dezenas e centenas de cativos, voltada essencialmente para o mercado, tentada em diversas regiões, com destaque para as propriedades triticultoras da Sicília. Sob a forte pressão dos produtores escravizados, abriram-se as portas à longa transição ao colonato e, a seguir, àprodução feudal. Nesta última, o produtor não era mais, como anteriormente, propriedade plena do explorador. Sob a obrigação de pagamento de rendas delimitadas, ele passou a controlar sua família e seus instrumentos de trabalho e a gerir relativamente a gleba à qual era adstrito. Essa importante evolução histórica não o emancipou imediatamente da servidão pessoal parcial [servidão da gleba]. A escravidão plena, menos produtiva e mais custosa, manteve-se como relação de dominação subordinada na Europa, em alguns casos, até o século 18.

A violência foi sempre a principal forma de submissão do trabalhador na escravidão patriarcal e pequeno mercantil. Os cativos e cativas tidos como relapsos e desobedientes eram forte e exemplarmente castigados. Os atos de rebelião contra os proprietários e seus familiares e os feitores eram punidos com a tortura e a morte. Não raro, os cativos rebeldes eram queimados vivos. No Império, quando a escravaria urbana dos romanos mais ricos podia superar os cem membros, o receio dos proprietários à resistência do cativo chegou ao paroxismo. Lei romana dos primeiros anos de nossa era determinou que, se um proprietário escravista [pater famílias] ou seu familiar fossem assassinados, todo cativo que, encontrando-se a uma distância em que pudesse ouvir seu pedido de ajuda, não o socorresse, seria torturado e executado. Nos tempos de Nero, Padânio Secondo, prefeito de Roma, foi justiçado por cativo que lhe pagara e não recebera a manumissão. Todos seus quatrocentos cativos, de ambos os sexos e das mais variadas idades, foram executados, apesar da agitação que a terrível medida causou entre a plebe romana formada em boa parte por libertos.

A escravidão apoiou-se também na submissão ideológica dos cativos. Entre os múltiplos mecanismos utilizados, destacava-se o convencimento do cativo – de dos escravizadores − da natureza diversa e inferior do subordinado, proposta que racionalizava e consolidava a ditadura dos escravizadores sobre os escravizados.

2. A Racionalização da Exploração Escravista na Antiguidade

Na Grécia homérica, a escravidão era vista inicialmente como decorrência dos azares da sorte – guerra, captura, dívida, etc. A visão platônica expressava já uma época em que a escravidão tornara-se instituição importante. Para Platão, a servidão de um indivíduo ou de um povo devia-se à incapacidade de se autogovernar, por falta de discernimento intelectual, cultural ou moral, qualidades exclusivas ao mundo, cultura e homem helênicos. Porém, para ele, era a lei que determinava quem era escravo e senhor. Entretanto, sua teoria da superioridade da alma sobre o corpo consubstanciava já a visão da submissão necessária do súdito ao soberano, da mulher ao homem, do escravizado ao escravizador.

A visão aristotélica da escravidão nasceu em sociedade solidamente escravista. Para Aristóteles, era inaceitável que um homem fosse submetido e mantido na escravidão apenas pela força, sancionada pela lei. O que apontava igualmente ao cativo a força, como forma de emancipação possível. Aristóteles superou a tese platônica, ao defender raiz natural e, portanto, genético-racial à servidão. Para ele, a reunião de diversas famílias formava o burgo e a associação de diversos burgos, a cidade, ou seja, a sociedade política. Um processo determinado pela natureza que compelia "os homens a se associarem" na procura do "fim das coisas", a felicidade de todos.

Para Aristóteles, a família "completa", unidade de base da sociedade, forma-se por homens livres e escravizados. Para ele, a natureza criara as coisas diferentes, na procura da especialização, pois o melhor "instrumento" era o que serve para "apenas" um "mister", e não para muitos. Essa visão expressava uma consciência, ainda que limitada e alienada, do avanço da produção social através da divisão e especialização do trabalho e de seus instrumentos. Assim, na consecução de fins comuns, seres de essência diversa complementavam-se, cada qual realizando a função para que fora criado pela natureza, na consecução do bem comum. Os mais elevados comandavam os menos perfeitos. "A autoridade e a obediência não só são cousas necessárias, mas ainda [...] úteis. Alguns seres, ao nascer, se vêem destinados a obedecer; outros, a mandar."

A natureza determinava que o pai dominasse o filho, o homem a mulher, o senhor o escravo.

"[...] a todos os animais é útil viver sob a dependência do homem. Os animais são machos e fêmeas. O macho é mais perfeito e governa; a fêmea o é menos, e obedece. A mesma lei se aplica naturalmente a todos os homens." "Há também, por obra da natureza e para a conservação das espécies, um ser que ordena e um ser que obedece. Porque aquele que possui inteligência capaz de previsão tem naturalmente autoridade e poder de chefe; o que nada mais possui além da força física para executar, deve, forçosamente obedecer e servir – e, pois, o interesse do senhor é o mesmo que o do escravo."

Fundando o direito da servidão na inferioridade natural e não na força, Aristóteles consolidava ideologicamente a ordem escravista grega, impugnando a escravização do heleno, por um lado, e a validade-direito do bárbarode emancipar-se pela força, por outro. Propunha que oprimidos e opressores se associariam na consecução de objetivos comum, pois, sendo a opressão algo própria da ordem natural, não haveria civilização à margem da mesma. Foi sempre estratégia recorrente dos opressores defender não apenas a justiça mas também a bondade social de opressão.

Aristóteles foi mais longe, ao propor que a especialização natural, ou seja, a inferioridade e superioridade, se expressasse na própria constituição dos seres. A inferioridade dos "animais domésticos", que serviam com a "força física" ao dono nas suas "necessidades quotidianas", como o boi, o asno, etc., registrava-se nos seus corpos de brutos, especializados para tais funções. O mesmo ocorria entre os homens, pois a "natureza" pareceria "querer dotar de características diferentes os corpos dos homens livres e dos escravos." "Há na espécie humana indivíduos tão inferiores a outros como o corpo o é em relação à alma, ou a fera ao homem". Os homens incapazes de outra função que as relacionadas à "força física" eram "destinados à escravidão".

A proposta de registro material da superioridade ou da inferioridade naturais dos homens constituía elemento central na racionalização aristotélica da exploração escravista, retomada plenamente no mundo romano, e, mais tarde, na Idade Média e Moderna. A força desta proposta encontrava-se no registro, indiscutível, nos corpos, da inferioridade da alma. O que tornava materialmente visível a comprovação de hierarquização social natural, com homens superiores, destinados a mandar e serem servidos, e homens inferiores, destinados a obedecer e a servir. Porém, tal proposta materializou-se em forma limitada no mundo grego, por falta de condições objetivas nas quais pudessem se apoiar as fantasmagorias dos escravizadores.

Mesmo no mundo grego tardio, os cativos provinham sobretudo das províncias e regiões periféricas do mundo helênico. Portanto, havia forte identidade étnica entre os grupos étnicos dos amos e o dos cativos. O que dificultou a tentativa permanente de apontar traços somáticos que expressassem as naturezas diferenciais, superiores e inferior, dos escravizadores e dos escravizados. Ainda que condições de vida diversas tendam adiferenciar fisicamente, em forma relativa, explorados e exploradores, mesmo de mesma origem étnica.

Inicialmente, a escravidão romana apoiou-se na escravização de povos itálicos, de forte semelhança étnico-somática, o que impedia a plena realização do princípio aristotélico da expressão física da inferioridade natural do cativo. Com a extensão da escravidão, foram feitorizados infinidade de povos da bacia do Mediterrâneo e da Europa Ocidental, Central e Oriental. A diversidade étnico-linguística dessa população escravizada dificultou, também, o procurado registro fenótipo da pretensa natureza humana inferior do escravizado. No Império, a retórica aristotélica foi igualmente debilitada pela expansão da cidadania e da classe dos grandes escravistas para além do núcleo étnico romano.

A sociedade romana enfatizou a cultura e a língua como elementos diferenciadores, ainda que os múltiplos traços fenótipos dos cativos fossem apontados como registro de inferioridade. É de geral conhecimento a descrição de escravista romano, com propriedade na Magna Grécia – um italiano meridional, nos dias de hoje –, dos traços semi-bestializados de seu cativo germânico. Ou seja, um alemão atual. Sequer renascimento ibérico da escravidão, com a Reconquista, produziu identificação cabal e duradoura entre etnia e escravidão. Tal fenômeno materializou-se plenamente quando do renascimento do escravismo, nas Américas, dando origem à desqualificação essencial do africano subsaariano, base das visões racistas antinegro contemporâneas.

3. A Escravidão de Mouros e Pretos em Portugal

As práticas e concepções escravistas foram introduzidas na Península Ibérica pelas legiões romanas vitoriosas e, mais tarde, mantidas pelos dominadores visigodos como forma de dominação subordinada. Em 711, os muçulmanos atravessaram o estreito de Gibraltar, mantendo-se na Ibéria até a perda definitiva de Granada, em 1492. A luta à morte entre cristãos e muçulmanos pela península enfatizaria fortemente a escravidão. Inicialmente, os conquistadores cristãos passavam no fio da espada as populações muçulmanas derrotadas. Logo, apenas os guerreiros eram eliminados, reduzindo-se à escravidão os restantes. As necessidades da exploração das terras conquistadas, em boa parte despovoadas pela guerra, ensejaram que razias fossem lançadas sobre os territórios muçulmanos para capturar trabalhadores a serem explorados nas cidades e campos. Difundiu-se também a captura e venda de muçulmanos assaltados no Mediterrâneo e nas costas da África do Norte. Os muçulmanos procediam do mesmo modo com os cristãos.

A Reconquista teria melhorado a sorte dos servos pessoais originais, metamorfoseados em servos da gleba e a seguir em colonos livres. Decaiu igualmente a importância dos antigos cativos e fortaleceu-se a dos cativos islamitas. A retórica justificadora da feitorização do muçulmano rompeu radicalmente com a racionalização aristotélica da escravidão. A escravidão do muçulmano não se devia mais a uma pretensa inferioridade natural. A excelência da civilização islâmica mediterrânica e a forte identidade étnica, sobretudo entre o muçulmano ibérico e o moçárabe, ou seja, cristão arabizado pela vida na Ibéria islâmica, impediam propostas de inferioridade natural do cativo muçulmano. Agora, a escravidão era justificada pela adesão a uma crença que ofendia gravemente o verdadeiro deus, nos céus, e devia, portanto, ser castigada, na terra. Era a guerra justa contra o inimigo da fé divina, determinada pelo Estado e pela Igreja, que justificava a escravidão, em proveito dos homens pios, é claro. No fundamental, o mesmo critério apoiava a escravidão de cristãos pelos muçulmanos. Entretanto, no mundo ibérico, cativos cristãos seguiam sendo escravizados por senhores cristãos, ainda que em número decrescente.

No mundo romano, o trabalhador escravizado era denominado sobretudo de servus. A dissolução e a metamorfose das relações escravistas foram tão lentas e imperceptíveis que o produtor direto emergiu no mundo feudal sendo tratado do mesmo modo que os antigos cativos nas línguas européias– servus, servo,serf, etc. No século 10, quando da retomada relativa do escravismo na Europa Ocidental, foi necessário uma nova designação para o trabalhador escravizado. As guerras de Otão I [912-973], o Grande, duque da Saxônia, inundaram a Europa com cativos trazidos da Esclavônia, nos Bálcãs. Com o passar dos anos, o termoescravo perdeu o sentido étnico-nacional, ou seja, originário da Esclavônia, para descrever o homem escravizado. Ou seja, o servus da Antiguidade. Na Lusitânia, o uso do designativo escravo foi tardio.

Até meados do século 15, a dominância da escravidão de muçulmanos levou a que o termo português substitutivo de servus fosse mouro, pois os muçulmanos que invadiram e colonizaram a península Ibérica provinham da Mauritânia [Saara Ocidental]. Logo, em Portugal, o muçulmano feitorizado era designado de "mouro", não importando de onde viesse, na bacia do Mediterrâneo. Em 1444, começaram a chegar a Portugal as primeiras partidas de negro-africanos, capturados quando do avanço marítimo lusitano ao longo do litoral atlântico da África. Por longas décadas, mouros e negro-africanos trabalhariam como cativos, lado a lado, em Portugal, nas cidades e nos campos. O neologismo português mourejar designaria o trabalho duro como cativomouro ou, mais tarde, como cativo negro.

Em Portugal, a palavra negro era usada para designar o homem de pele mais escura, livre e escravizado. Como o negro-africano era ainda mais escuro, foi designado diferencialmente de "preto". Daí, ser chamado de "mouro preto", sem ser proveniente da Mauritânia e muçulmano. Em inícios do século 16, quando a escravidão do negro-africano se sobrepunha já claramente à feitorização do muçulmano, o uso da palavra escravo difundiu-se em Portugal, já sem qualquer referência à religião e à origem nacional. Então, tínhamos "escravo mouro", "escravo negro", "escravo preto", "escravo branco". Em Portugal, com a forte dominância da escravidão do negro-africano, "preto" tornou-se sinônimo de cativo e de escravo. Nesse novo contexto, a visão aristotélica da escravidão, como consequência de pretensa inferioridade natural, foi retomada e enfatizada como jamais, como a principal justificativa daquela instituição. A pele branca seria sinal de excelência, a negra, de inferioridade. Nascia o racismo anti-negro.

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