8 de janeiro de 2011

Entrevista com Jesús Santrich sobre o destaque de Bolívar

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por Comunicadores de Nuestra América

*Jesús Santrich é integrante do Estado Maior Central das FARC-EP

17/12/2010-abp noticias

Sabemos que as FARC-EP formam uma organização que se reivindica marxista-leninista e bolivariana. Explique por que.

Antes de mais nada, gostaria de saudar todos vocês e os que irão escutar ou ler essa nossa conversar. Eu gostaria de começar dizendo que as FARC são uma organização insurgente, uma organização guerrilheira, político-militar que possui um propósito central em sua luta: conquistar a paz com justiça social para todos os colombianos. Dentro do marco de nosso ideário, desejamos também que essa justiça social se irradie em toda Nossa América. A partir daí, podemos concluir o porquê de sermos marxistas-leninistas e porque somos bolivarianos. Uma e outra forma de pensamento tem esses mesmos propósitos: a busca da paz, da justiça, da igualdade e da liberdade para um coletivo humano. Portanto, se observarmos as metas e os objetivos, tanto o marxismo-leninismo quanto o bolivarismo, colocam seus empenhos nessas reivindicações. Eles coincidem. Em consequência disso, as FARC seguem por este mesmo caminho.

Simón Bolívar, Marx e Lenin pertencem a tempos históricos diferentes. Os dois últimos lutaram pela construção do socialismo, enquanto Bolívar lutou pela independência e emancipação dos povos da Nossa América. Diante disso, como se confluem o bolivarismo e o marxismo-leninismo? Existem contradições em ambas correntes de pensamento? Como elas são compreendidas pelas FARC?

Bem, o marxismo-leninismo e o bolivarismo são dois temas complexos. É necessário estudá-los bastante para encontrar as similitudes e encontrar as possíveis contradições que possam existir entre um e outro. Nas FARC, o que nós focamos são as confluências. Acreditamos que existem muitas similaridades e as mais importantes estão relacionadas com os propósitos defendidos por ambos. Embora as épocas sejam diferentes, são propostas para se alcançar metas específicas, relacionadas à conquista da paz, da justiça social, da igualdade e da liberdade dos povos. Essa é sua maior coincidência. É no aspecto da ordem social que possuem mais identidade e, na medida em que possuem essa identidade, se complementam, se entrelaçam, se amarram, se viram para o mesmo fluxo de uma corrente com muita força, para apresentar saídas aos problemas que, mesmo em épocas distintas, têm plena vigência. Existe o problema da fome, o da opressão aos povos por parte das classes exploradoras que existiam tanto na época de Bolívar como na vida de Marx e de Lenin. Então, digo que, atualmente, esses problemas se apresentam agravados. Por isso esse pensamento segue tendo vigência. Isso acontece porque são propostas, são opções para superar essa história de injustiça e chegar à conquista da igualdade, a conquista da verdadeira liberdade.

Nas FARC, ao invés de nos preocupamos em encontrar pontos de contradição, tratamos de encontrar os maiores pontos de coincidência. Às vezes, escutamos opositores do marxismo-leninismo dizerem que se trata de uma ideologia forasteira. Talvez em outras partes do mundo, o bolivarismo seja uma ideologia forasteira e dizer isso pode conduzir a uma expressão de chauvinismo.

Nas FARC, consideramos que qualquer expressão de pensamento, surja onde surja, se é em benefício da humanidade, não tem nacionalidade, não tem dono. É patrimônio da humanidade. É o que acontece com o marxismo e com o bolivarismo. Entrando em detalhes e profundidade, poderíamos analisar que Bolívar, em muitas de suas expressões, em muitos de seus escritos, fala de Deus e que o marxismo-leninismo, em sua concepção filosófica materialista, nega a existência de Deus. Poderíamos dizer, a partir daí, que existe uma contradição. Para nós, esses são aspectos secundários frente a todos os pontos de coincidência que possuem um e outro acerca da proposta social. É a isso que recorrem as FARC em seu projeto de luta.

O que é bom para a humanidade, sem deixar de lado as peculiaridades de cada povo, deve encontrar confluência. No caso de Bolívar, buscamos essa firmeza de identidade em toda Nossa América, a firmeza, o respeito, a valorização que faz das tradições as mais autênticas dos povos ameríndios, ajudando a entender e compreender, da melhor maneira, as circunstâncias em que vivem os setores mais oprimidos da época de sua luta, como era o caso dos escravos e dos indígenas. Uma das bandeiras principais era acabar com a escravidão, com a servidão e alcançar a liberdade para todos os homens, elevando-os a categoria de cidadãos. Estes elementos de autenticidade, como eu dizia, são tomados por Bolívar conjuntamente com as demais contribuições à humanidade.

Se estudarmos os pensadores que falam sobre Bolívar, veremos que uma das principais reflexões feitas é que o Libertador utilizou muito os escritos de Rousseau e dos pensadores do Iluminismo e da Ilustração. Sem dúvida, tais embasamentos o ajudaram muito em suas elaborações. A isso se somou toda sua experiência, toda a sua raiz, os costumes dos povos ameríndios e dos povos trazidos, de forma obrigada, da distante África. Então, ele objetivava ser como o pintor: usar a melhor paleta, a melhor mistura para a melhor obra. Aí está o que eu dizia sobre os elementos autênticos, de como ele contribuiu ao resto da humanidade. Utilizou-se de sua humanidade, de sua própria experiência, de sua identidade e devolveu à humanidade em geral. E não por casualidade, mas como decisão dentro do humanismo internacionalista, solidário e universal. São estes princípios que figuram na concepção de Bolívar, assim como na concepção de Marx e de Lenin. É esta identidade e confluência de pensamentos que nos interessa, mais que as contradições. São nessas concepções que nós das FARC-EP nos baseamos.

Falamos sobre a concepção da história que tinha Bolívar. Como ela influencia na concepção de história das FARC-EP?

É uma pergunta complexa, mas tentarei responder. Eu não sei se você já escutou um repente, uma improvisação dos índios naborí. Eles são uma espécie de repentistas, os melhores da Nossa América. Um repentista cubano disse assim:

“Bolívar de aço e mel.

Eu tremo quando te evoco,

capitão do Orinoco,

tendo os Andes como quartel,

os cascos do teu corcel

vão colocando centelhas,

não deixando rastros de servos,

nem de tiranos

de tuas mãos saíam

povos livres como estrelas”.

É isso que Bolívar representa. Bolívar não é um teórico consciente. Ao escrever, não fez com a intenção de deixar escrito. Não era seu ofício ou sua profissão teorizar. É um homem que teoriza juntamente com a execução da prática. Por isso não temos como objetivo encontrar um compêndio, um manual sobre teoria da história, da filosofia, da política. Porém, de fato, quando observamos as cartas, os pronunciamentos, as conclamações, todo o conjunto é uma verdadeira cátedra. Uma cátedra que tem uma transcendência muito importante, porque vai sendo construída à medida que Bolívar avança em seu projeto revolucionário. Ao mesmo tempo em que ele avança no projeto revolucionário, promove a execução de suas idéias. Quando falo de Bolívar em algumas conversas, em alguns papos, sempre faço uma diferenciação entre o ideário de Bolívar, de suas idéias em geral. Em Bolívar, às vezes observamos a existência de idéias que surgem de uma determinada conjuntura, para resolver um determinado problema ou uma necessidade de ordem prática. No entanto, existem outras idéias de muito mais transcendência, de muita importância que estão apresentadas ou concebidas para o tempo futuro, para o tempo vindouro. Talvez pareçam inatingíveis para o momento que estamos vivendo, mas pensando nos nossos ideais, essas idéias constituintes de seu ideário, refletem que sua ação se torna cada vez mais intrépida, mais decidida, mais revolucionária.

No mesmo sentido, está a concepção de Bolívar. Para ele, a história é o homem, é a ação do homem em tempos diversos, nutrindo-se do passado de sua identidade. Por conta disso, eu expresso muito a palavra raiz. É o homem bebendo da memória, é o homem tomando as substâncias de seus ancestrais, de seus avós, das experiências do povo. Isso é a identidade retornando do passado, vindo ao presente por uma luta que se faz necessária. Não só com o intuito de planejá-la, mas de fazer dela um dever fundamental. Uma luta não somente para as gerações do presente, mas sim como uma possibilidade de melhorar a sociedade do futuro.

Essas são as dimensões do tempo em Bolívar e que fazem parte de sua concepção da história.

Mas a história de Bolívar não é só execução e prática. É uma conjunção entre a teoria e a práxis, num ciclo infinito de execuções, de experiências que vão deixando marcas no tempo.

Você perguntou sobre a identidade da concepção histórica do marxismo-leninismo e do bolivarismo. Já não digo Bolívar, mas sim bolivarismo. Faço essa distinção porque o Bolívar não milita apenas em suas idéias. Ao lado dele existem muitos povos militando em torno dessas idéias. Existem muitos dirigentes, muitas lideranças militando em torno desses propósitos, em torno desse ideário. Por isso, falo bolivarismo. Falar Bolívar é retirar a essência da dimensão de seu pensamento e esta não está somente em sua época, mas também na nossa. Hoje, milhares e milhares de pessoas se baseiam nesse pensamento, o interpretam, o executam e o praticam na busca de seus objetivos altruístas.

Então, nessa busca em encontrar identidades ou diferenças, encontramos, culturalmente, em Bolívar a crença em Deus. Em muitas de suas conclamações, evoca e fala em nome de Deus, mas não como fonte fatalista da história. Ele não crê no determinismo da natureza, nem das condições geográficas, nem no determinismo do poderoso “dedo de Deus”. Para ele, existe uma influência tanto de elementos da consciência, como materiais. Porém, no devir das sociedades está presente o homem e, sobretudo, os povos que possuem o papel de definir o rumo da história. Nessa questão há identidade com o marxismo-leninismo. Na concepção materialista dialética e histórica, o devir dos povos, o desenvolvimento das sociedades, a história em si, está definida pelo papel desempenhado pelos povos dentro dos processos de produção. Em Bolívar ocorre, basicamente, o mesmo.

Portanto, afirmo ser esta a coincidência principal. Se nos debruçarmos em maiores detalhes, a concepção de Bolívar de que até sua época os governos e os estados se aperfeiçoaram em oprimir e não libertar, também coincide com a concepção da história da luta de classes, a partir da aparição da propriedade privada. Assim, podemos dizer que Bolívar e o marxismo possuem claro que, somente destruindo a máquina do Estado, que oprime, é que se pode construir uma nova sociedade. Ambos os ideários tomam como meta possível a justiça, a igualdade e a liberdade de toda a humanidade. No bolivarismo, está a idéia da Colômbia, em princípio, como integração hemisférica e, depois, como integração solidária do Universo. O que se pretende alcançar no marxismo é a busca desta mesma integração no comunismo. Ambos objetivam a busca da liberdade para o povo, a criação de nações e repúblicas livres, explicando que a liberdade não é somente o rompimento das cadeias de um jugo determinado, mas sim que a mesma deva ser proveniente da consciência dos homens em particular e da sociedade em geral.

É possível compararmos essa idéia com a concepção burguesa e imperialista da história, que é antinatural, arranjada pelos interesses mesquinhos e freio consciente e brutal do devir da humanidade em direção a concretização da aliança e da justiça. No bolivarismo e no marxismo é apresentado, do princípio ao fim, o anti-imperialismo. As duas concepções coincidem com o humano princípio de busca da solidariedade no conjunto social. Tudo isso faz a perfeição da liberdade como possibilidade da realização máxima do homem. Em particular do homem, porém, antes de tudo, da sociedade. Por conta disso, a luta revolucionária em Bolívar e no marxismo-leninismo não é uma opção, mas um dever. Talvez o mais humano dos deveres. Esses elementos devem se integrar na concepção de história no bolivarismo e no marxismo-leninismo. A história não se detém. Ela é o avanço da sociedade para um estado superior de justiça, de igualdade, de liberdade, onde se acredita na essência natural da solidariedade existente nos seres humanos.

Desde quando as FARC-EP adotaram o ideário bolivariano?

Cobrar vigência das idéias revolucionárias não basta. Apenas se pode cobrar sua justiça e sua verdade. Elas não estão presentes no meio ambiente, no ar, imperturbáveis. Num mundo onde existe a luta de classes, as contradições entre aqueles que exploram e os que são explorados, existem idéias que estão em oposição a tais práticas, mas também as contrárias a defesa da emancipação, da liberdade, da justiça, como ocorre com as idéias de Bolívar. No caso da Colômbia, é assim: as idéias ganham vida quando saem das bibliotecas, dos arquivos e das prateleiras, porém para conseguirem entrar nas consciências e andar pelas próprias pernas do povo, é preciso lutar contra àquelas impostas aos contrários à conversão desse ideário em motor da ação de mudança, na ação revolucionária. Esse fato ocorre com as idéias de Bolívar, já que elas têm estado presente não somente na história da Colômbia, mas sim em toda a Nossa América, desde 1819, momento de início da ação aberta do Libertador. Porém, a partir desse momento, passaram a existir muitos opositores. Talvez um dos seus mais inflamados seja Santander e os santenderistas. Ao mesmo tempo em que Bolívar se opunha à servidão e ao escravismo, à subjugação da América aos europeus e à subjugação dos povos do mundo aos exploradores, também ia crescendo o fervor pela liberdade na cabeça dos bolivarianos. Em contrapartida, aumentava assustadoramente a irritação dos poucos mesquinhos santanderistas que possuíam o poder econômico e a possibilidade de acabar com o pensamento bolivariano, que já estava na consciência dos povos. Isso não mudou com os herdeiros do santanderismo e os exploradores seguiram buscando esmagar as idéias e o ideário do Libertador. Eu explicava o momento em que Bolívar, que era um mestre da ação constante, chamado de mestre da energia, tinha alguns projetos para a conjuntura apresentada, para as dificuldades que se foram demonstradas no caminho e tinha planos de resolução dessas situações imediatas. Porém, suas melhores idéias estão projetadas no futuro. Você se dá conta disso na Carta da Jamaica, que contém projetos sobre a unidade da América. Mas ele não pretendia consolidar imediatamente essa proposta quando fez o projeto contido na Carta. Ele nem sequer tinha o exército que, posteriormente, controlou em suas mãos. Então, o primeiro passo dado foi a constituição desse exército para, depois, iniciar a expedição de Callos e de Jacmel. Ao tomar Angostura é que vê a possibilidade de avançar para a integração. Ainda sem ter uma Venezuela em suas mãos e com um governo provisório, planejou a criação da Grande Colômbia para integrar, num primeiro momento, a Nova Granada e a Colômbia. Mas ainda não tinha em seu controle os países que iriam integrar essa Grande Colômbia. Promoveu a batalha de Boyacá, proclamou aos mil ventos e disse que o Equador fazia parte dela. E foi construindo, conforme as possibilidades reais, planejando e projetando, de acordo com o desejo mais forte, o propósito mais sublime concebido. Esse é o ideário. Portanto, uma coisa são as idéias para o imediato. Elas são muito grandes e louváveis, pois têm relação, não somente com o entorno mais próximo, mas com os propósitos que estão relacionados a toda humanidade. O propósito bolivariano vai além da Grande Colômbia. Alguns o limitam ao grande propósito de integrar a Grande Colômbia, o Peru, Equador, Bolívia, Venezuela, porém a idéia da Colômbia vai mais além. É uma idéia hemisférica, é uma idéia universal de consolidar a solidariedade no universo. Esse é o ideário. Essa é a diferença que eu estabeleço entre o que são as propostas para o momento e o que é o ideário como pensamento de Bolívar.

Então, por mais que seus inimigos queiram esmagar estas idéias, não conseguirão. Isso porque elas possuem relação com a natureza do homem. Assim como Bolívar, acreditamos que o homem não é o lobo do homem, mas sim, por natureza, é instintivo, é sociável. Acreditamos que o homem possua entranhas de justiça e de solidariedade. Sabemos que a história tem que marchar nesse rumo, pois tem que ter a essência do homem. E essa que estamos mencionando agora é compartilhada pelos grandes humanistas da história do pensamento, onde figura Bolívar. Acreditamos nisso e sabemos que a história vai tomar este rumo. Essa conquista terá vigência por muitos anos, não só para a época de Bolívar, para a nossa época, mas também para as épocas vindouras. Isso demonstra o caráter futurista de seu pensamento. Naquela época se pensava que a idéia da integração, da unidade não seria possível. Bolívar não a via como um propósito remoto, colocava os degraus para alcançar, ao menos, o propósito da integração da Pátria americana, ainda que sem os Estados Unidos. Os Estados Unidos eram um fator de decomposição, um fator de choque contra esse ideal solidário. Então, ele falava da integração da América Meridional como um propósito a ser construído depois, pelo Congresso. Porém, não era porque geraria uma espécie de chauvinismo americanista. Falava da Colômbia hemisférica e, depois, insistiu novamente, falando da integração de todos os países da terra, de todo o universo. Por conta disso, falava de que a América era a esperança do universo. No entanto, a América ressurgia como o país da exploração. Ele tinha um planejamento que despoluiria essa prática medieval, essa prática colonialista que marcou com tanta ênfase a história até o século XIX. Hoje, existe uma remarcação desse caráter colonialista no imperialismo ianque e no imperialismo praticado por muitas potências da Europa. Portanto, segue vigente o pensamento de Bolívar.

É difícil afastar um pensamento deste tipo, ainda mais estando tão identificado com a essência humana, que é a essência da justiça e da solidariedade. Não gosto de falar no caso da Colômbia, porque Colômbia é um despropósito. Falar da Nova Granada como Colômbia é contradizer o ideário do Libertador. Quando Bolívar falava da Colômbia, falava da idéia integradora da Nova Granada, da Venezuela, do Equador, enfim, do hemisfério americano. Porém, temos que ressaltar que essa é uma consequência de todos os fatos ocorridos ao longo da história. Aqui em nosso país, da academia até o sistema educacional, nas escolas, nos colégios e nas universidades, tratam de cercear as idéias emancipatórias de Bolívar. Se não conseguem cercear, ocultam ou, pelo menos, tergiversam-nas e quando se evoca o herói montado num pedestal de mármore, é para deixá-lo morto e frio, para que não sirva de exemplo, mantendo distantes suas idéias que deveriam entrar em marcha pelo povo, em busca de suas reivindicações. Isso é o que ocorre aqui. Contudo, o pensamento de Bolívar é sentimentalmente internalizado. Não há compatriota nesta parte do território americano que não leve em seu coração Bolívar. Digo isto para explicar que, no caso das FARC-EP, cada guerrilheiro primeiro tem de ser sentimentalmente bolivariano, antes mesmo de ser guerrilheiro. Nós temos um afeto muito grande pelas idéias do pai da Pátria. Então, a primeira aproximação de Bolívar pode ser de tipo sentimental, inclusive informalmente bolivariana. As FARC se refletem na construção de um projeto, na busca de um caminho para encontrar a liberdade, na edificação da idéia de uma segunda e definitiva independência. Quando se diz isso, se está invocando a defesa independentista de Bolívar. Eu não poderia dizer que desde a fundação das FARC, em 27 de maio de 1964, a organização adotou Bolívar, formal e estruturalmente, como sua estrela e seu guia. Mas posso afirmar que adotou sentimentalmente. Esse aspecto está no coração, mais que na consciência dos combatentes, aclarando a convicção comunista. Na mente dos dirigentes comunistas da época, Bolívar esteve presente como guia. Refiro-me à grande reivindicação feita por Gilberto Vieira, antes da fundação das FARC, sobre a personalidade do projeto de Bolívar como uma alternativa para os países de Nossa América, como uma solução a todos os problemas existentes.

Em Nossa América isso está latente e não podemos perder de vista. O aporte teórico de Gilberto Vieira ajuda a esclarecer muito essa contradição que existia. Mesmo porque, se dizia que Marx havia objetado Bolívar. Teoricamente, Marx objetou Bolívar e foi um dos erros do Marx humano desconhecer Bolívar. Ele teve a possibilidade. Algumas fontes indicaram quem era realmente este personagem. Em grande parte, são os comunistas colombianos que ajudam a esclarecer porque Marx adotou esta posição. No entanto, é necessário dizer que Marx adotou uma posição não marxista sobre Bolívar. Uma posição marxista é aquela que reivindica este personagem como uma liderança popular em busca da justiça, não somente dos povos de Nossa América, mas de todo o mundo. Talvez os anos 80 tenham marcado a nossa tomada de decisão, de maneira mais enfática de integrar o pensamento boliviano, já não de maneira sentimental, já não de maneira afetiva, mas sim de forma racional e mais consciente ao acervo teórico que move nossa organização insurgente. Como eu disse, nós revolucionários confluímos onde quer que estejamos e o pensamento revolucionário também coincide, independentemente da época e do lugar onde tenha surgido. Então, com Bolívar nós estamos coincidindo desde o nascimento da organização, desde as épocas de Irco e de Chaparral, quando se remontou o surgimento da organização armada comunista. Desde essa época estamos coincidindo na prática, porque temos os mesmos propósitos. Nós estamos buscando a justiça, a igualdade, a liberdade e esses elementos são antecedentes para a construção de uma verdadeira democracia. Democracia esta que é necessária para o estabelecimento de uma verdadeira república popular. É isso o que queremos e o que temos buscado. E, nesse sentido, nos chamamos estatutariamente bolivarianos, já que temos uma prática bolivariana.

Nos anos 80, de maneira dirigida, o camarada Manuel, que é um artífice fundamental em seu exército, pensamento e ação, e o camarada Jacobo Arenas, começaram a difundir intensamente o pensamento bolivariano nos documentos internos. Inclusive, na época das tentativas de diálogo com Uribe, existiam alguns livros do camarada Jacobo Arenas referentes ao processo de paz. Em alguns deles, existem verdadeiros compêndios das principais idéias do Libertador em todos os aspectos, inclusive do Bolívar construtor não somente de nações, mas também de Estados, do Bolívar estadista, que tinha um conceito de poder, de como organizar a sociedade, como reger as pessoas e de que maneira conduzir essa sociedade.

Há um personagem que não podemos omitir, tamanha a importância de seu papel: o camarada Efraín Guzmán. Por que eu o menciono? Porque ele foi de extrema valia para a difusão nas Frentes. O camarada Efraín Guzmán foi o primeiro comandante guerrilheiro que conduziu professores para que fossem, de frente em frente, difundindo o pensamento bolivariano. Essa ação era feita, obviamente, com a coordenação e aprovação do estado maior central. Mesmo porque a difusão de um pensamento que favorece a nossa atuação é uma decisão de toda a direção. Repito: todo nossa prática como revolucionários coincide com Bolívar. Se entre revolucionários coincidimos, então entre farianos, marxistas-leninistas temos que coincidir com o bolivarismo. Hoje, podemos dizer que teórica, conceitualmente e estatutariamente somos também bolivarianos. Isso está colocado desde a Oitava Conferência, em 93. Nossos estatutos assinalam claramente que as FARC-EP são um exército de ação político-militar, marxista-leninista e bolivariano. Isto é muito bonito, pois parece que fomos primeiro, na prática, bolivarianos e é melhor que seja assim.

Conclui-se que toda pessoa verdadeiramente marxista, já que o marxismo é um pensamento humanista, tem que ser bolivariano. Quando começa a conhecer a genialidade totalmente entregue ao bem social que tinha Bolívar, compreende porque este é um caminho. O marxismo de interpretação e transformação acertado, somado a cada realidade, deve ter uma particular interpretação, existindo ações adequadas a mesma essa realidade. Para o caso da Nossa América, na primeira independência, a interpretação do mundo que assumiu as penúrias dos indígenas escravizados e dos mestiços empobrecidos foi a bolivariana. Então, podemos dizer que essa é a melhor interpretação de nosso meio, a que mais se aproxima dos problemas que hoje temos. Se somos realmente marxistas, temos o entendimento de que o bolivarismo é o que vai nos ajudar a fazer uma real interpretação do mundo, além de nos dar as ferramentas para fazermos uma mudança real no mundo. Isso é o marxismo-leninismo, não uma filosofia para a especulação e a reflexão. É uma filosofia para a interpretação e transformação da realidade, de igual maneira o bolivarismo.

Se o bolivarismo nos fala da construção de uma sociedade mais humana, mais justa, necessariamente caímos no marxismo. Hoje, o marxismo-leninismo é a filosofia que busca o ideal mais alto para os seres humanos e acredita na possibilidade de conquista desse ideal: a construção de uma sociedade onde o homem colabore mutuamente com o homem, solidariamente. Uma sociedade comunista. Compreendemos que o bolivarismo e o marxismo são fórmulas que têm por resultado um enorme potencial, capaz de possibilitar as transformações necessitadas pelo mundo para ser de todos e para todos. Ambos são práticas de interpretação e transformação quando genuinamente assumidos.

Quais são os principais elementos que retomam do projeto político e social de Simón Bolívar para a construção da Nova Colômbia?

O poder e o Estado são categorias de tipo político. Talvez elas não tenham em Bolívar a mesma acepção que tem hoje. No caso do Estado, podemos dizer que é a expressão jurídica de tudo que está relacionado à nação e sua organização. A expressão espiritual e de consciência da nação é o que Bolívar define na palavra Pátria. A Pátria em Bolívar é o maior dos sentidos, o maior dos esforços defendidos pelo Libertador para a consolidação e estruturação de uma nova sociedade. Porém, como base e como coluna de todos estes conceitos, o principal é a palavra Povo. Toda a concepção política e social em Bolívar é em função do bem-estar do povo. Dele pode sair qualquer sorte de conceitos: o de justiça, igualdade, liberdade, democracia, república, poder, o de Estado e o de nação.

Todos têm como essência o bem-estar, a busca pela máxima felicidade do povo. O governo quase se identifica com Estado. Talvez não tenha a mesma acepção, em princípio, que o conceito de Estado contido no leninismo. Para o leninismo, o Estado é essa expressão jurídica, esse aparato dominado e utilizado pelas classes poderosas para oprimir as classes mais desfavorecidas. Aqui, digo que se assemelha ao governo, porém não como deve ser. Em Bolívar, esse governo deve gerar a maior quantidade de felicidade possível para o povo. Por fim, o que representa o Estado no momento em que ele estava lutando contra a Espanha tem o mesmo sentido que em Lenin. Esse aparato contra o qual estava lutando tinha que ser destruído e, para isso, construiu um exército. É fundamental entender que a concepção de guerra em Bolívar está ligada a esta concepção de Estado. Para ele, a guerra não é uma opção, mas um dever. É preciso assumi-la para poder acabar com toda a opressão gerada pela Espanha. Existe uma frase muito importante de Bolívar que não podemos perder de vista: “todo homem que possa fazer um bem a humanidade, se converte em delinquente caso permaneça ocioso”. A isso podemos encaixar a idéia de que a guerra é um dever. Está expresso no manifesto de Cartagena e, assim, Bolívar assumiu essa concepção porque a guerra deveria destruir a máquina de opressão, que era o império espanhol, para poder construir uma nova estrutura, onde a liberdade resplandecesse.

Após essa explanação, podemos afirmar que o povo é o poder. Existem inúmeras maneiras disso ser demonstrado. Assim, é dele que deve vir o mandato para atuar em benefício das maiorias. Porém, uma coisa é esse poder elaborado, relativamente acabado. Quando digo relativamente é porque acredito que sempre há a possibilidade de melhorar, principalmente se constituindo uma democracia que atue, resolvendo as necessidades materiais e espirituais, com a participação direta da maior quantidade de gente e para toda a gente. É essa a possibilidade vista por Bolívar. Não na monarquia, não na tirania, mas sim na república, que passa a ser um de seus objetivos. A república democrática é uma das bandeiras mais altruístas apresentadas por Bolívar. No entanto, uma coisa são as concepções e outra é como o poder poderia se ajustar às circunstâncias em que Bolívar estava vivendo. Explico: a república é o ideal de Bolívar. Um poder organizado como apresentado no Congresso de Angostura, fundamentado na igualdade dos homens entre si, entre os povos, dentro de cada ser e em sua consciência. Um poder fundamentado na moral e nas luzes, que priorize a abolição da escravidão, da servidão, na distribuição igualitária da propriedade e na universalização da educação para construir a república virtuosa. O próprio sistema se retroalimenta, aperfeiçoando mais e mais a participação e integração de mais e mais homens livres. Porém, chegar a esse patamar, implica sair da escuridão que existe, espalhando a mesma escravidão e servidão. Implica enfrentar, dentro e fora do exército libertador, àqueles que se opõem ao projeto. É por isso que Bolívar teve que assumir decisões que não são parte do bolivarismo.

O pensamento bolivariano é o maior acabado, o que possui mais permanência. É o projeto pelo qual luta o Libertador. Então, existem alguns aspectos que não são essência desse pensamento, mas sim ações necessárias para defender cada passo do avanço de seu projeto social. Um exemplo disso é a ditadura, uma ditadura democrática, como a de 1817, com a qual foi possível consolidar o exército que ascendeu à Bocayá e, depois, resultou na Grande Colômbia, a partir de Angostura. Eu diria que se converteu em ditadura, mas se ele não o fizesse nesse momento, sua conquista não se consolidaria. Ele não unificaria o exército e, caso não o unificasse, não seria possível se sustentar, manter o governo provisório que foi formado quando tomou Angostura. E ainda, se não fizesse isso, não teria conseguido sequer organizar o congresso de Angostura e, menos ainda, não teria sido possível ascender até Boyacá e ultrapassar os obstáculos que o possibilitaram proclamar a Grande Colômbia. Existem decisões de conjuntura que, na boca de qualquer distraído ou mal intencionado, são enumeradas como ações antidemocráticas do Libertador. Mentira. Elas foram medidas tomadas para consolidar os avanços de uma república democrática, ou ditadura popular, que defendia os interesses dos desfavorecidos, Essa necessidade de deu quando, depois, da convenção de Ocaña, a mesquinhez santanderista prorrompeu para desfechar o golpe de morte ao projeto da Grande Colômbia. Aí, dizem: “Bolívar se converteu num ditador!”. Mentira. Mesmo sendo uma ditadura, existia um conselho de Estado que tinha mais poder que ele mesmo. Assim, Bolívar assinou o fim da ditadura, desembocando nas eleições para eleger o governo livre e democrático. Assumiu isso para defender os interesses dos indígenas e dos negros, a quem as classes dominantes queriam manter em escravidão. Retiraram os servos e escravos da Espanha para entregá-los aos exploradores. É necessário considerar esses elementos para falar do poder defendido por Bolívar. O poder é o povo, é dele que advém todo o mandato. Esse poder se organiza numa república democrática, que só pode ser constituída por homens livres. Naquele momento, não bastava que fossem apenas livres das cadeias da Espanha, mas sim livres de qualquer império. Caso não fossem livres em sua consciência, não seriam homens virtuosos, homens que saíam da escuridão com a luz da moral, com a luz da educação. Quanto à educação, se considera que ela deva ser gratuita, deva ser uma obrigação, um dever do Estado, oferecida a todos os cidadãos indígenas, negros, mestiços e brancos, independentemente de qual seja sua origem geográfica, de classe, racial. E isto não é somente teoria. Existem muitos exemplos práticos que podem sustentar, que podem dar força a esta argumentação do Libertador.

Nessa construção de poder, o exército possui um papel muito importante, pois ele é formado pelo mesmo povo. Falamos que o poder está agregado, assimilado, que o poder advém do povo e o exército é o povo em armas, que defende as liberdades cidadãs. O povo organizado dessa maneira passa a ter condições de defender seus interesses. No entanto, mesmo com a força das armas, com a justiça de suas razões, esse novo homem que é gerado nessa nova república democrática deve possuir a virtuosidade. Então, o exército se insere como um mecanismo de expressão da moral, da virtuosidade desse povo. Em nada se assemelha ao tipo de exército que temos hoje em dia, totalmente distante dos interesses e das necessidades populares. Ele se insere dentro de todo o conjunto de organismos do povo que têm como papel a condução da sociedade. Então, há outro fator importante: a unidade. Às vezes, é apresentada a dicotomia de que primeiro surge a unidade e dela se gerará a liberdade. O fato é que esses são elementos que vão atuando em conjunto. Ao mesmo tempo em que se vai gerando a liberdade, se vai consolidando e solidificando a unidade. Isso, na prática, nós podemos ver quando Bolívar libertou parte da Venezuela e a Nova Granada unificou esse esforço para seguir com as libertações, saindo até Carabobo. Ao promover a liberdade, a unidade cresceu, a libertação alcançou o sul e assim sucessivamente. Cada passo de liberdade é um passo para a consolidação da unidade e cada passo de unidade é um passo que dá fé e garantia de liberdade. Tudo isso está integrado. A unidade se apresenta incluída nessa concepção tradicional liberal, resultado da divisão do poder em executivo, legislativo e judiciário, mas que não fala da divisão, enquanto complementação dessas ramificações do poder, de uma complementação que gera uma unidade de dentro, da qual deve estar imbuído também o poder moral. Já falamos do poder moral como um elemento que ajuda na multiplicação da virtuosidade do povo. Um poder que, na prática, entra na garantia dos mais débeis. Um poder dos que, talvez, não estejam diretamente na direção ou na execução das decisões desse poder.

Quanto ao assunto da unidade, essência do poder, a concepção bolivariana é revolucionária para aquela época e para esta, para aquelas alianças que se faziam entre as nações do mundo para oprimir, por exemplo, a Santa Aliança. A quem se buscava libertar? Ninguém. O que se buscava era restabelecer as colônias dos impérios do mundo. A união americana começava a surgir com muita força. Os Estados Unidos da América surgiam já com a idéia de avassalar as muitas partes do mundo e, principalmente, as nações mais poderosas que rompiam as cadeias com o colonialismo espanhol. A unidade apresentada por Bolívar é uma unidade fundamentada na solidariedade, na cooperação entre as nações, onde nenhuma se coloca mais poderosa que a outra. Todas iguais no que tange a ajuda e colaboração e não para gerar um eixo de poder que se impusesse sobre os demais, mas que se colocasse em termos de igualdade. É importante ressaltar isso porque é uma idéia que se converte numa necessidade na atualidade, já que a polaridade ianque ameaça esmagar qualquer outra possibilidade de construção de sociedade ao impor essa idéia de estrangulamento das iniciativas de autonomia.

O que você quer dizer com assumir esse ideário de unidade de Bolívar?

É que todas as nações de Nossa América podem fazer um esforço comum de solidariedade em todos os campos, com um parâmetro de igualdade entre essas nações para que, como uma só potência, possam enfrentar os abusos do imperialismo. Não somente para fazer a defesa da livre determinação dos povos, da opção de construir uma sociedade justa para toda a humanidade, mas sim para que se possa ter um avançado eixo de poder, de construção de uma nova alternativa para todo o universo, para todo o mundo. É importante lembrar que não é só a Nossa América que padece por conta dos abusos do imperialismo. Isso também acontece na Europa, na Ásia, na África ou em qualquer outra latitude de terra. Então, hoje mais do que nunca, frente a essa arremetida criminosa do imperialismo, é cobrada a vigência do ideário bolivariano de unidade.

A unidade não é uma palavra simples, sucinta. Unidade para exercer a solidariedade, a defesa. Unidade para estender a mão àqueles que também necessitam elaborar uma rota de construção de uma nova sociedade, escutar que um outro mundo é possível. Claro, é possível. Porém, se não nos unirmos em torno da solidariedade isso não será possível. Eu acredito que exista uma decisão hoje de que se unifiquem as nações do mundo que sejam contrárias à exploração, à multiplicação da fome e da miséria dos povos. Existe uma identidade, uma crença num novo esforço porque é da unidade que se coloca um freio no imperialismo.

Concretamente, como as FARC-EP materializam isso? Como pensam colocar em prática uma Nova Colômbia?

De diversas maneiras, uma delas é como estamos fazendo. A construção do Exército do Povo é um exemplo disso. É um exército bolivariano dentro do qual buscamos e, acredito, estamos conseguindo criar uma potência, uma organização com enfoque teórico, mas também com força capaz de levar adiante uma luta que seja capaz de combater aos que se opõem a construção da justiça. Essa é uma maneira. O fato de nos esforçarmos para construir o exército bolivariano é uma maneira de assumir Bolívar. Ele não é só teoria, mas sim prática, um verdadeiro mestre de energia. Dizíamos que Bolívar foi assumido primeiro de maneira prática e, depois, chegamos às conceituações e à teoria, a todos os elementos que integram o bolivarismo. Quando digo que primeiro assumimos de maneira prática é porque o bolivarismo já estava na consciência dos combatentes de forma arraigada. A consciência já tinha sido semeada pela idéia de justiça, de igualdade, de liberdade, de democracia como propósitos prioritários, pelos quais estamos dispostos a dar a vida. Isso é uma forma de assumir o bolivarismo. Existem muitas outras formas de construção do movimento bolivariano, onde não só os homens das armas, mas também as pessoas dos bairros e comunidades indígenas e negras, as pessoas do movimento agrário, de todos os setores da sociedade participem e se expressem como queiram em torno de como querem que se construa a Nova Colômbia. É uma maneira de assumir Bolívar. Há um aspecto principal em retomar de Bolívar uma parte da unidade. Nós queremos a unidade de todos os setores sociais para modificar esta estrutura de poder injusta que persiste na Colômbia. O outro elemento é a democracia, a busca, a construção dela para o desenvolvimento dos projetos das FARC. Se bem somos uma organização político-militar, aquilo que se executa é o que absorvemos do querer das comunidades. Nosso plano de luta, nosso plano estratégico, nosso programa de construção de uma nova sociedade se faz considerando as necessidades das comunidades. Escutamos as necessidades através dos diferentes canais da clandestinidade que existem entre o povo em geral e o povo armado, que somos nós. Há outra maneira também. Nós temos um projeto de Estado e de organização da sociedade. Nós aspiramos ao lado do povo a tomada do poder e o poder vai em coincidência com a concepção bolivariana. Tal concepção defende que a execução das decisões desse poder devem ser acordadas conforme o povo queira, o povo deseje e assim o temos concebido. Em princípio, talvez seja necessário assumir uma ditadura e o exército revolucionário tenha que tomar muitas decisões. Enquanto isso, se busca neutralizar os herdeiros do santanderismo que defendem a permanência do servilismo, da escravidão, da miséria e do desemprego na Colômbia.

Na Colômbia, mais de 55% da população vive em condições de miséria, de miséria degradante. Muitos não estão dispostos a compartilhar as riquezas retiradas do solo, do suor e do sangue colombiano. Portanto, é necessário neutralizar essa situação pela via armada, pois eles se mantêm no poder utilizando os métodos mais deploráveis e mais sanguinários de repressão. O militarismo, o paramilitarismo, a guerra suja caracterizam o exercício do poder nas classes economicamente fortes aqui na Colômbia.

Isso que estou dizendo não se conquista da noite para o dia. É preciso fazer todo um esforço organizativo de educação, de ação com as massas. Dizemos que o povo é quem deve conquistar todas estas transformações e buscar estes propósitos. E nós somos parte do povo. O povo, enquanto palavra lançada no vazio, não conquista nada. Não é o povo como expressão, mas como realidade, não visto apenas como uma guerrilha, mas valendo-se de todas as capacidades, de todas as potencialidades que existam no coletivo. Ele possui capacidades e formas de se organizar. As FARC podem ser apontadas como uma das suas criações. As FARC não devem ser compreendidas como algo separado do povo, como uma coisa etérea. Sim como uma criação de filhos do povo que se organizam para conquistar as reivindicações que estão em seu seio.

A estrutura guerrilheira tem se organizado, assim como a miliciana, a do partido clandestino e a do movimento bolivariano. Dentro de todas elas existe uma formação marxista-leninista, mas também uma formação bolivariana. Na formação dos quadros, dos dirigentes, desde os mais altos aos guerrilheiros recém-ingressos, todos recebem a formação bolivariana nas escolas de formação. A guerrilha, a milícia, o partido e o movimento bolivariano estão integrados. Buscamos não só a nossa formação enquanto revolucionários, mas sim a formação de todos os filhos da América. Isso é o que queremos. É uma luta que estamos travando e acreditamos que seja uma luta em que devem participar todos os jovens, todas as lideranças da Colômbia e da Nossa América. Objetivamos que o pensamento bolivariano, a cátedra bolivariana se difunda nas escolas, colégios, universidades, nas ruas, nos sindicatos e nas barricadas, como forma de municiar com elementos e ferramentas de luta a cada um dos compatriotas americanos. Nós proporcionamos essa formação aqui e cuidamos para que ela chegue às barricadas e aos jovens através de nossos contatos. Produzimos documentos, músicas porque entendemos que essa concepção bolivariana deve se arraigar fortemente na parte mais profunda da consciência e do espírito. Por isso, devem ser escutadas as canções que falam da luta, da consciência, do amor contido no ideal bolivariano, das idéias e pensamentos que têm relação com todas as facetas da vida humana. Dentro desses elementos que recorremos e que levamos à prática, talvez um dos mais bonitos seja a solidariedade. Não somos apenas solidários entre nós. Prestamos solidariedade com tudo o que podemos. Nossa própria luta é um ato de solidariedade e deve ser entendido assim. Se existe a disposição de entregar a vida, de morrer pelo outro, por nossos irmãos de pátria, de pobreza, de miséria, essa luta deve ser compreendida como um ato bolivariano de solidariedade. A nossa solidariedade é com todos os povos do mundo. Não podemos estar presentes no Equador, no Peru, na Argentina, nas lutas dos haitianos, dos dominicanos, porém nosso coração está. Cada luta que realizamos nas montanhas, nas chapadas é uma luta que fazemos pensando em cada um dos compatriotas, em cada um dos filhos da Pátria Grande, da pátria americana. Porque, ao fim e ao cabo, como disse Martí, “todos somos filhos de sua espada”. Assim, encontramos a maneira de demonstrar nossa solidariedade: através das lutas que travamos. Lutamos por nós mesmos, mas também por todos. De igual maneira sentimos que o que os demais povos fazem por suas lutas, também reflete a solidariedade com o povo colombiano. Essa similitude ocorre da mesma forma com que fazia Bolívar na América. É como um grande tambor cujo o som vibrado num determinado lugar, ressoa em todo o continente. Esperamos que neste local onde se encontrasse o tambor, o golpe dado seja tão forte que seu som seja escuta dentro e fora do continente. É uma atitude antiimperialista vibrar o som do tambor, que quando soa, soa contra a forma mais degradante de exploração: o imperialismo. Esse imperialismo está fundamentalmente na cabeça não só do povo dos Estados Unidos, mas em seu governo. Torcemos que o povo norte-americano comece a nos ajudar a tocar o tambor, a ressoar, para que a liberdade alcance todo o continente.

Explique qual a relação entre o Exército do Povo, que vem sendo construído pelas FARC, e o exército libertador de Bolívar.

Nós somos o Exército do Povo porque a luta que nós levamos adiante como organização militar, obedece aos interesses dos setores majoritários desfavorecidos da Colômbia. É preciso dizer que lutamos pelos desempregados, pelas donas de casa que vivem na miséria, por toda a juventude que não tem oportunidades de estudo, de trabalho, de progresso, de se desenvolver como pessoas. Lutamos, enfim, pela maioria da população. O exército do libertador era também assim. Ele se constituía pelo povo organizado em armas, assim como nós somos, buscando, em sua época, conquistar as reivindicações fundamentais da maioria, como abolir a servidão, a escravidão, abolir todas as discriminações que existiam sobre os setores mestiços empobrecidos, sobre toda a população não espanhola que, de alguma maneira, era marginalizada.

Agora, como povo armado, assim como o exército de Bolívar, nossa estrutura militar é integrada, basicamente, por pessoas oriundas da classe social oprimida. Aqui, o grosso dos componentes do exército revolucionário são os filhos dos setores mais humildes, mais oprimidos da população colombiana. Essas são comparações mais simples. Podemos complementar dizendo que existe algo em que não encontramos coincidência plena: a concepção que move estes dois exércitos.

Para Bolívar, o exército devia ser um componente moral fundamental. Devia ser como a consciência do povo. Esse povo organizado, formado na virtude das luzes dos conceitos patriotas mais profundos, devia marcar a pauta. Deveria ser o exemplo de comportamento na sociedade. Nós consideramos o mesmo. O povo, na medida em que vai se organizando como exército revolucionário, deve desvincular ainda menos do conjunto da sociedade. Deve segurar ainda mais, agarrar as reivindicações, as concepções, as opiniões, os pontos de vista geral que possui a sociedade, no que se refere ao rumo a ser tomado para seu desenvolvimento.

Quando nós falamos de exército dentro de uma concepção bolivariana, temos que falar do projeto social. Nessa concepção, o conceito de exército está totalmente ligado ao projeto social. Na época de Bolívar, no projeto imperava a justiça, a igualdade, a liberdade, a possibilidade de construir a democracia e, dentro dessa perspectiva, construir uma república popular. A conquista disso só seria alcançada através da luta, porque existia um elemento que não ia permitir avanços: a opressão da Espanha. Uma opressão feita com forte aparato militar. Então, nesse momento, Bolívar entendeu que a guerra se impunha não mais como uma opção, mas como um dever. Por ser um dever, colocava aqueles que não atuavam como delinquentes, além de figurarem ao lado dos opressores. Nesse sentido, não compartilhava a neutralidade. Deveria existir uma ação revolucionária para reivindicar os interesses do conjunto da sociedade à custa da vida de cada um.

Hoje em dia, eu acredito que isso deve ser visto da seguinte forma: aquele que não assume o dever de empunhar a espada para buscar a justiça, aquele que não assume o dever de lutar onde existam povos escravos para defendê-los é tão delinquente quanto o que oprime. Dessa maneira, se obriga a conceber uma forma de romper as cadeias que afligem uma sociedade. Se se define que a guerra é uma opção, a guerra de todo o povo passa a ser legítima defesa e, além disso, uma possibilidade de encontrar a liberdade. Isso implica que o projeto de sociedade está ligado à construção de um aparato que possa contra-atacar a força inimiga. Isso está relacionado com as vias e as formas de luta. A construção de um exército era vista por Bolívar, com base em sua conjuntura, como a única possibilidade de luta, já que todas as outras alternativas se fechavam como resultado do terror implementado pela Espanha. Hoje em dia também, na medida em que se vão fechando as possibilidades de diálogo com o adversário, em que milhões e milhões de pessoas são cada vez mais reprimidas, cada vez mais exploradas, torturadas, silenciadas, assassinadas para que não se levantem contra a situação atual, em que se fecham os espaços pacíficos para encontrar saídas para as contradições. Então, se converte em um dever assumir a luta armada e participar da construção de um exército revolucionário, que lute pelas reivindicações populares. Isso é um exército revolucionário.

Entrevista com Jesús Santrich sobre o destaque de Bolívar

por Comunicadores de Nuestra América

*Jesús Santrich é integrante do Estado Maior Central das FARC-EP

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Oleh

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