Jon Lee Anderson
É curioso, historicamente falando, que Margaret Thatcher tenha
morrido no mesmo dia em que os peritos criminais no Chile exumaram os
restos do grande poeta chileno Pablo Neruda. Ganhador do Prêmio Nobel de
Literatura em 1971 e autor do épico Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada,
Neruda morreu com 69 anos (supostamente de um câncer de próstata),
apenas doze dias depois do violento golpe de Estado de 11 de setembro de
1973, organizado pelo comandante do exército, Augusto Pinochet, contra o
presidente socialista eleito, Salvador Allende. Os aviões de combate
bombardeavam o Palácio Presidencial e Allende resistia com valentia, mas
cometeria o suicídio, com um fuzil que lhe havia sido presenteado pelo
presidente de Cuba, Fidel Castro, quando os capangas de Pinochet tomaram
o prédio. Neruda era muito amigo e apoiador de Allende; estava doente,
mas planejava sair do país rumo ao México, onde havia sido convidado a
se exilar. Enquanto jazia no leito de morte em uma clínica, sua casa foi
destroçada pelos militares.
Em seu funeral, uma enorme multidão marchou pelas ruas de Santiago –
uma cidade sombria e praticamente vazia, exceto pelos veículos
militares. Diante de sua tumba, em um dos poucos atos conhecidos contra o
golpe de Estado nos dias que se sucederam, os assistentes cantaram aInternacional
e saudaram Neruda e também Allende. Ao mesmo tempo, os homens do regime
rodeavam a cidade, queimando livros de autores proscritos e caçando
aqueles que pudessem achar, para torturar ou matar.
Um par de anos atrás, o ex-motorista de Neruda expressou a suspeita
de que Neruda havia sido envenenado, dizendo ter ouvido do poeta que os
médicos lhe deram uma injeção e que, imediatamente depois, seu estado
piorou drasticamente. Há outras pequenas evidências que reforçam sua
teoria, mas nada conclusivo. Agora, é possível que a criminalística
proporcione a resposta a uma incômoda pergunta histórica.
Por que trazer Maggie Thatcher a isso? Segunda-feira, em nota oficial,
o presidente Barack Obama disse que Thatcher foi “uma das grandes
campeãs da independência e da liberdade”. Na verdade, ela não foi.
Thatcher foi uma feroz combatente da Guerra Fria e, no que diz respeito
ao Chile, nunca mostrou a devida compaixão pelas pessoas que Pinochet
matou em nome do anti-comunismo. Preferia falar do tão alardeado
“milagre econômico chileno”.
E matar foi o que ele fez. Os soldados de Pinochet reuniram milhares
de suspeitos no estádio nacional do país e, ali mesmo, os levaram aos
vestiários, corredores e arquibancadas para torturá-los e assassiná-los a
tiros. Centenas morreram nesta situação. Um deles foi o reverenciado
cantor chileno Victor Jara, que foi massacrado, suas mãos e costelas
quebradas e em seguida metralhado, seu corpo jogado fora como lixo num
beco da capital –junto com muitos outros. A matança continuou inclusive
depois que Pinochet e seus militares tiveram o firme controle do poder;
só que era feito em segredo, nos quartéis militares, em edifícios da
polícia e no interior do país. Críticos e opositores do novo regime
também foram assassinados em outros países. Em 1976, a agência de
inteligência de Pinochet planejou e executou um atentado com carro-bomba
em Washington que acabou com a vida do ex-embaixador chileno nos
Estados Unidos na gestão Allende, Orlando Letelier, assim como de seu
auxiliar norte-americano Ronni Moffitt. A Grã-Bretanha qualificou a
matança de Pinochet como inadequada e implementou sanções ao regime,
negando-lhe prover armamentos – isso até que Margaret Thatcher se tornou
primeira-ministra.
Em 1980, um ano depois que Thatcher tomou posse, acabou o embargo de
armas a Pinochet; logo ele estava comprando armamentos do Reino Unido.
Em 1982, durante a Guerra das Malvinas, Pinochet ajudou o governo de
Thatcher com informações de inteligência sobre a Argentina. A partir
daí, a relação se tornou absolutamente confortável, tanto que Pinochet e
seus familiares começaram a fazer uma peregrinação particular anual a
Londres. Durante estas visitas, eles e os Thatcher comiam juntos e
bebericavam uísque. Em 1998, quando eu estava escrevendo um perfil de Pinochet para The New Yorker,
Lucía, a filha de Pinochet, descreveu a senhora Thatcher com
reverência, mas confidenciou que o comportamento do marido da
Primeira-Ministra, Dennis Thatcher, era um tanto embaraçoso e que ele
costumava ficar bêbado nos encontros. A última vez que me encontrei com o
próprio Pinochet em Londres, em outubro de 1998, ele me disse que ia
telefonar a “La Señora” Thatcher com a esperança de que tivesse tempo de
encontrá-lo para o chá. Duas semanas depois, Pinochet, ainda em
Londres, foi preso por ordem do juiz espanhol Baltasar Garzón. Durante a
prolongada quase-detenção de Pinochet, em uma casa confortável no
subúrbio londrino de Virginia Water, Thatcher mostrou sua solidariedade
ao visitá-lo. Ali, diante das câmeras de televisão, expressou a dívida
da Grã-Bretanha com seu regime: “Sei o quanto devemos ao senhor” por
“sua ajuda durante a campanha das Malvinas”. Também disse: “Foi você
quem levou a democracia ao Chile”.
Isso, naturalmente, é uma deturpação de proporções tão gargantuescas
que não pode ser menosprezada como excesso de zelo de um amigo leal.
Pinochet morreu em 2006 sob prisão domiciliar e enfrentando mais de
300 processos criminais por violação de direitos humanos, evasão fiscal e
malversação de fundos. Naquela época, suspeitava-se que tinha mais de
28 milhões de dólares escondidos em contas secretas em vários países,
sem nenhum sinal de que haviam sido obtidos legalmente. No final, a
única defesa de Pinochet foi uma humilhante alegação de demência –de que
não era capaz de se lembrar de seus crimes. O derradeiro ataque
cardíaco veio antes de que pudesse ser condenado.
Durante os anos do que poderia se chamar de retorno do Chile à
democracia – quando Pinochet foi forçado a deixar a presidência após um
plebiscito sobre seu mandato, que perdeu – pouco se fez para exorcizar
de fato os demônios do país, e muito menos julgá-los. Pinochet conservou
o comando das forças armadas e quando se retirou, em 1998, tornou-se
senador vitalício, o que lhe dava imunidade a processos judiciais. Até
sua prisão na Grã-Bretanha, os presidentes que governaram o Chile
“democrático” continuavam a caminhar na ponta dos pés ao redor do fato
de que o ex-torturador em chefe do país seguia ditando os termos do
debate nacional sobre seu passado recente. No entanto, 16 meses após o
retorno à casa, Pinochet perdeu a imunidade parlamentar, foi indiciado
criminalmente por alguns dos crimes da era golpista, e permaneceu boa
parte do resto de sua vida em prisão domiciliar. Mas foi Michelle
Bachelet, presidenta do Chile de 2006 a 2010 – a filha de um general que
se opôs ao golpe e foi torturado até que morreu de um ataque do coração
na prisão –, quem acabou com a tradição de deferência.
Num país onde, por décadas, a história foi enterrada, é justo que os
chilenos desenterrem Neruda para averiguar o que aconteceu com ele. Em
certo sentido, Neruda foi o Lorca chileno, o poeta espanhol assassinado
nas primeiras semanas do golpe de estado fascista de Francisco Franco na
Espanha em 1936, e cujo sangue tem sido uma mancha na consciência do
país desde então.
O Chile tem agora a chance de fazer a coisa certa por seu poeta. A
casa de praia de Neruda na Isla Negra, a alguns quilômetros de Santiago
pela costa, é uma encantadora, modesta residência numa praia rochosa,
com janelas que se abrem para o mar e decorada com a lírica coleção de
carrancas de velhos barcos do poeta. Ele e sua viúva, Matilde Urrutia,
foram sepultados ali, e foi lá que os peritos foram buscar a verdade
sobre o que ocorreu. Mesmo que Neruda tenha morrido de câncer, como se
disse na época, sua exumação é uma oportunidade para reforçar a mensagem
aos autoritários de toda parte que as palavras de um poeta sempre
durarão mais que as suas, e ainda mais que a adulação cega de seus
poderosos amigos.
Ding-dong ! The witch is dead ! Vejam só este filminho: http://www.youtube.com/watch?v=uMFjFoq6T9M.
Jon Lee Anderson: não, Thatcher não era uma “campeã da liberdade”, Obama
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Oleh
Rubens Ragone