17 de janeiro de 2010

Adeus ao comunista José Peba - Por Bernardete Wrublevski Aued (*)


José Peba Pereira dos Santos nasceu em São João do Cariri, Paraíba, em 21 de janeiro de 1917 e o seu coração de militante comunista deixou de bater no último dia do ano de 2009, na cidade de Campina Grande, Paraíba. De profissão sapateiro, foi dirigente sindical, militante do Partido Comunista Brasileiro. Diferentemente dos comunistas de grandes cidades como Rio de Janeiro ou São Paulo, cujo anonimato resulta em certas garantias de vida, José Peba torna-se comunista num contexto onde os dirigentes políticos estavam pouco ou nada habituados com a convivência de sindicato, greves e liderança de trabalhador. Nesta situação, José fez política pelo avesso e, muitas vezes escapou por pouco de perder a vida. Veio deste período o apelido Peba, uma metáfora ao tatu Peba, um animal hábil cavador nas entranhas da terra. José escava as entranhas do poder constituído, questionando-o dentro do trabalho e fora dele.
José Peba viveu da atividade de sapateiro assalariado combinada com a atividade política. Por aderir ao comunismo, e por isso pagou um preço. Inúmeros desaparecimentos temporários motivados pela militância, a fuga da polícia e as prisões deixaram marcas indeléveis e um rastro de fome e dor. A dor que causou a seus familiares não tem origem nos gestos ditos impensados de José, mas decorre da sociedade em que vive. É, assim, uma dor social. Certa vez, perguntei a José se viveria tudo outra vez, se pudesse. Respondeu que tinha plena consciência da dor causada aos outros, mas não tinha alternativa. Era viver e sangrar ou não viver. Explicou-me que viver é como fazer sapato: “para fazê-lo é preciso uma fôrma para moldar o couro do sapato, que pressupõe o corte, a prensa, a colagem e a costura.”
O sapateiro José trabalhou desde a mais tenra infância, muito embora não tivesse, na época, estatura física de trabalhador. As evidências de trabalho remontam aos seis anos, quando foi ajudante do seu próprio pai em diversas tarefas rurais. O menino José pouco frequentou a escola, somente o fez durante os primeiros anos do primário. A evocação sobre a lembrança do tempo de escola e da primeira professora, Albertina Amorim, foi recordação não do tempo em que estudava, mas do tempo em que carregava a cal para construir a escola. Nesses traços, ele não foi nada original; também em quase nada se diferenciou de muitas crianças brasileiras de sua época, assim como também das atuais. Em 1933, após a incapacitação temporária de seu pai, por doença, José passou a sustentar, quase sozinho, os 10 irmãos. Trabalhou duro, como ele próprio diz: “aos dezesseis anos, trabalhava tanto que já estava até cansado de trabalhar. Tudo o que consegui foi escapar da fome com muito sacrifício”. Em seguida e de forma indissociada desempenha a profissão de sapateiro, inconcebível sem a política. Em termos cronológicos, este período dura aproximadamente de 1940 até 1964, sendo interrompido abruptamente pelo golpe civil-militar. É também o tempo de irreverência e de descoberta. Migra para a cidade de Campina Grande. Ousado, inquieto, atrevido e, às vezes, até abusado, José emerge contra lideranças tradicionais, tanto no sindicato como no partido político. Na geração dos pais e irmãos de José evidenciou-se a presença do poder em condições muito peculiares. Tanto o pai de José, como, principalmente, sua tia Honorina, “tinham a política no sangue” e atuaram do lado do cangaço, ou melhor, daquilo que lembrava como cangaço. Tia Honorina protegeu uma pessoa – identificada como “Zé do Totô” –, que entrou para o cangaço por ter “feito justiça” com suas próprias mãos. Com isso, envolveu-se nas lutas da época, legando a José a “política no sangue”.
Em Campina Grande, José passa a ter outra vivência de poder político, uma vez conhece quadros do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e, a seguir, torna-se membro, de 1937 a 1963. Iniciado nessa forma de poder, procura dar vida orgânica ao partido a que pertenceu, vinculando-se a uma célula de fábrica. Lutador incansável José sonha alto com uma sociedade comunista.
O momento do golpe civil-militar, em 1964, é perpassado por medo, clandestinidade, prisões, perseguição e tortura. José vive momentos duros em todos os sentidos: perde a sua forma de sobreviver como militante profissional e o suporte resultante dos laços partidários do Partidão. De fato, ele já estava afastado do PCB antes do golpe, mas depois, este partido é particularmente esfacelado e a sua infra-estrutura é desmontada. Em 1964, José Peba estava com 47 anos. Isso quer dizer que ele pertence à última geração de sindicalistas que se forjam nos anos de desenvolvimentismo industrializante, especialmente na fase radical do governo de João Goulart, quando os comunistas, dizendo-se no poder, tudo faziam para ampliar a participação popular pela via das Reformas de Base. Ilusórias ou não, as aspirações daquele momento deram substância crítica e subversiva à vida de muitos trabalhadores. José Peba é um deles. Em todo local em que trabalhava, procurava dar vida orgânica ao PCB, vinculando-se a uma célula. A clandestinidade, a repressão, nada disso apaga a sua chama de operário da construção da sociedade socialista.
Nos anos sessenta, devido a divergências internas, foi afastado do PCB, mas como ele fazia questão de assegurar muitos anos depois, seu coração continuava comunista. Dizia mais ainda, que não deveria ter enfrentado sozinho a direção do Partido. Ao invés de acertar sozinho, disse que seria mais interessante errar juntamente com o coletivo.
Nos anos 1970 inicia-se um processo de distensão política que resulta em anistia política e a retomada de eleições. José Peba que tinha se calado, praticamente, desde 1964 ressurge como fênix, das cinzas, juntamente com muitos outros líderes comunistas. Reencontra-se com Luis Carlos Prestes e Gregório Bezerra, dois comunistas de "carteirinha" que estavam no exterior havia muito tempo. Eles se abraçam e José Peba abraça novamente a causa comunista. No entanto, os tempos eram outros: a questão era ser comunista sem estar no PCB.
Neste ínterim, ocorreu a sua candidatura a vereador do município de Campina Grande apoiado por diversas forças comunistas e de oposição. Foi eleito com 1.713 votos para o mandato 1983 -1988.
Há, portanto grandes traços constitutivos de seu retrato: lutador indomável, sapateiro militante, e por fim pesquisador. O lutador incansável, combatente sensível defendeu a vida e a humanidade. O sapateiro militante é destemido batalhador de sua profissão que jamais descola sapato de política e assim se faz pesquisador entusiasta da vida. O pesquisador José Peba surge dentro da militância rompendo a barreira de uma escolarização precocemente interrompida. Como se tivesse uma jóia rara guardou alguns cadernos de cursos organizados pelo PCB, desde o início dos anos 1950. Olga Benario, filha de Peba me disse, em 1998, que um dia sua filha havia pedido atenção do avô e ele lhe respondeu: "não vê que não posso falar com você, pois estou estudando?" José Peba se fez pesquisador aos 83 anos. A compreensão da necessidade do estudo e da pesquisa se reforça na maturidade de sua vida, quando transforma a mesa da cozinha em mesa de estudos, forjando, com têmpera de aço, sua performance de sapateiro que discute com entusiasmo análise de conjuntura.
José Peba viveu da condição de ser sapateiro e dela aposentou-se. Ao final da vida, já quase cego, a seu lado ninguém ficava sem prosa. Quem disse que para olhar o mundo são necessários olhos?
José Peba entra no cenário de Campina Grande, amplia-o para o Brasil e para o mundo e desvela o que não quer (e não vai) calar: o sapateiro militante José lutou muito e tudo fez para que a bandeira da foice e do martelo tremulasse no chão que pisava.
José Peba Pereira do Santos? Presente!

(*) Professora da UFSC

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Oleh

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