"Sexta-feira, 18 de Novembro de 2011, 11:00. Palácio do Planalto, Brasília.
Excelentíssima Sra. Presidenta Dilma,
querida ministra dos Direitos Humanos Maria do Rosário. Demais ministros
presentes. Senhores representantes do Congresso Nacional, das Forças
Armadas. Caríssimos ex-presos políticos e familiares de desaparecidos
aqui presentes, tanto tempo nessa luta.
Agradecemos a honra, meu filho João
Paiva Avelino e eu, filha e neto de Rubens Paiva, de estarmos aqui
presenciando esse momento histórico e, dentre as centenas de famílias de
mortos e desaparecidos, de milhares de adolescentes, mulheres e homens
presos e torturados durante o regime militar, o privilégio de poder
falar.
Ao enfrentar a verdade sobre esse
período, ao impedir que violações contra direitos humanos de qualquer
espécie permaneçam sob sigilo, estamos mais perto de enfrentar a
herança que ainda assombra a vida cotidiana dos brasileiros. Não falo
apenas do cotidiano das famílias marcadas pelo período de exceção.
Incontáveis famílias ainda hoje, em 2011, sofrem em todo o Brasil com
prisões arbitrárias, seqüestros, humilhação e a tortura. Sem advogado de
defesa, sem fiança. Não é isso que está em todos os jornais e na
televisão quase todo dia, denunciando, por exemplo, como se deturpa a
retomada da cidadania nos morros do Rio de Janeiro? Inúmeros dados
indicam que especialmente brasileiros mais pobres e mais pretos, ou
interpretados como homossexuais, ainda são cotidianamente agredidos sem
defesa nas ruas, ou são presos arbitrariamente, sem direito ao respeito,
sem garantia de seus direitos mais básicos à não discriminação e a
integridade física e moral que a Declaração dos Direitos Humanos
consagrou na ONU depois dos horrores do nazismo em 1948.
Isso tudo continua acontecendo,
Excelentíssima Presidenta. Continua acontecendo pela ação de pessoas que
desrespeitam sua obrigação constitucional e perpetuam ações herdeiras
do estado de exceção que vivemos de modo acirrado de 1964 a 1988.
O respeito aos direitos humanos, o
respeito democrático à diferença de opiniões assim como a construção da
paz se constrói todo dia e a cada geração! Todos, civis e militares,
devemos compromissos com sua sustentação.
Nossa história familiar é uma entre
tantas registradas em livros e exposições. Aqui em Brasília a exposição
sobre o calvário de Frei Tito pode ser mais uma lição sobre o período
que se deve investigar.
Em Março desse ano, na inauguração da
exposição sobre meu pai no Congresso Nacional, ressaltei que há exatos
40 anos o tínhamos visto pela última vez. Rubens Paiva que foi um
combativo líder estudantil na luta “Pelo Petróleo é Nosso”, depois
engenheiro construtor de Brasília, depois deputado eleito pelo povo,
cassado e exilado em 1964. Em 1971 era um bem sucedido engenheiro,
democrata preocupado com o seu país e pai de 5 filhos. Foi preso em casa
quando voltava da praia, feliz por ter jogado vôlei e poder almoçar com
sua família em um feriado. Intimado, foi dirigindo seu carro, cujo
recibo de entrega dias depois é a única prova de que foi preso. Minha
mãe, dedicada mãe de família, foi presa no dia seguinte, com minha irmã
de 15 anos. Ficaram dias no DOI-CODI, um dos cenário de horror naqueles
tempos. Revi minha irmã com a alma partida e minha mãe esquálida. De
quartel em quartel, gabinete em gabinete passou anos a fio tentando
encontrá-lo, ou pelo menos ter noticias. Nenhuma noticia.
Apenas na inauguração da exposição em
São Paulo , 40 anos depois, fizemos pela primeira vez um Memorial onde
juntamos família e amigos para honrar sua memória. Descobrimos que a
data em que cada um de nós decidiu que Rubens Paiva tinha morrido
variava muito, meses e anos diferentes...Aceitar que ele tinha sido
assassinado, era matá-lo mais uma vez.
Essa cicatriz fica menos dolorida hoje,
diante de mais um passo para que nada disso se repita, para que o Brasil
consolide sua democracia e um caminho para a paz.
Excelentíssima Presidenta: temos muitas
coisas em comum, além das marcas na alma do período de exceção e de
sermos mulheres, mãe, funcionária pública. Compartilhamos os direitos
humanos como referência ética e para as políticas públicas para o
Brasil. Também com 19 anos me envolvi com movimentos de jovens que
queriam mudar o pais. Enquanto esperava essa cerimônia começar,
preparando o que ia falar, lembrava de como essa mobilização começou. Na
diretoria do recém fundado DCE-Livre da USP, Alexandre Vanucci Leme,
um dos jovens colegas da USP sacrificados pela ditadura, ajudei a
organizar a 1a mobilização nas ruas desde o AI-5, contra prisões
arbitrárias de colegas presos e pela anistia aos presos políticos. Era
maio de 1977 e até sermos parados pelas bombas do Coronel Erasmo Dias,
andávamos pacificamente pelas ruas do centro distribuindo uma carta
aberta a população cuja palavra de ordem era
HOJE, CONSENTE QUEM CALA.
Acho essa carta absolutamente adequada
para expressar nosso desejo hoje, no ato que sanciona a Comissão da
Verdade. Para esclarecer de fato o que aconteceu nos chamados anos de
chumbo, quem calar consentirá, não é mesmo?
Se a Comissão da Verdade não tiver
autonomia e soberania para investigar, e uma grande equipe que a auxilie
em seu trabalho, estaremos consentindo. Consentindo, quero ressaltar,
seremos cúmplices do sofrimento de milhares de famílias ainda afetadas
por essa herança de horror que agora não está apoiada em leis de
exceção, mas segue inquestionada nos fatos.
A nossa carta de 1977, publicada na
primeira página do jornal o Estado de São Paulo no dia seguinte,
expressava a indignação juvenil com a falta de democracia e justiça
social, que seguem nos desafiando. O Brasil foi o último país a encerrar
o período de escravidão, os recentes dados do IBGE confirmam que
continuamos uma país rico, mas absurdamente desigual... Hoje somos o
último país a, muito timidamente mas com esperança, começar a fazer o
que outros países que viveram ditaduras no mesmo período fizeram. Somos
cobrados pela ONU, pelos organismos internacionais e até pela Revista
Economist, a avançar nesse processo. Todos concordam que re-estabelecer a
verdade e preservar a memória não é revanchismo, que responsáveis pela
barbárie sejam julgadas, com o direito a defesa que os presos políticos
nunca tiveram, é fundamental para que os torturadores de hoje não se
sintam impunes para impedir a paz e a justiça de todo dia. Chile e
Argentina já o fizeram, a África do Sul deu um exemplo magnífico de
como enfrentar a verdade e resgatar a memória. Para que anos de chumbo
não se repitam, para que cada geração a valorize.
Termino insistindo que a DEMOCRACIA SE CONSTRÓI E RECONSTRÓI A CADA DIA. Deve ser valorizada e reconstruída a CADA GERAÇÃO.
E que hoje, quem cala, consente, mais uma vez.
Obrigada."
Vera Paiva (filha de Rubens Paiva)
Tomei conhecimento agora da mensagem
postada pela Vera Paiva (que reproduzo a seguir), onde ela comenta o
fato de não lhe ter sido dada a palavra na cerimônia de sanção da lei
que criou a Comissão Nacional da Verdade e divulga as anotações do que
seria sua fala.
Estou inteiramente solidária com a Vera
Paiva e concordo com os termos de sua fala não falada. Não afirmo, mas
acho que todos os familiares de mortos e desaparecidos e ex-presos que
estiveram presentes (e os que estiveram ausentes, mas assinaram a Nota
dos Familiares de 18/11/2011) também estão solidários com ela.
Aliás, acho muito estranho o episódio:
não falou nem a representante dos familiares nem a Ministra dos Direitos
Humanos. Mal sinal!
A explicação dada a Vera, de que tiveram
que encurtar a cerimônia não me parece adequada. Pior e mais grave é a
versão que circulou na imprensa (19/11/2011) de que Genoino teria
influenciado no sentido de não se conceder a palavra a uma representante
dos familiares porque isto poderia ser mal recebido pelos comandantes
militares. Inaceitável, tanto o argumento quanto o papel de Genoino!
Concluo dizendo: a Presidenta Dilma
precisa ouvir os familiares de mortos e desaparecidos políticos; e nós
precisamos nos unir para derrotar o obscurantismo, conquistar a Verdade
e a Justiça (como bem afirmou a Alta Comissária da ONU para os Direitos
Humanos).
Iara Xavier Pereira
“Depois de saber que fui impedida de
falar ontem, lembro de um texto de meu irmão Marcelo Paiva em sua
coluna, dirigida aos militares:”
“Vocês pertencem a uma nova geração de
generais, almirantes, tenentes-brigadeiros. Eram jovens durante a
ditadura (…)Por que não limpar a fama da corporação?
Não se comparem a
eles. Não devem nada a eles, que sujaram o nome das Forças Armadas.
Vocês devem seguir uma tradição que nos honra, garantiu a República, o
fim da ditadura de Getúlio, depois de combater os nazistas.
Vera Paiva
Universidade de São Paulo - PST & NEPAIDS
Discurso (proibido) de Vera Paiva na sansão da Lei da Comissão da Verdade
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Oleh
Rubens Ragone