por Miguel Urbano Rodrigues
com Ana Catarina Almeida
Um vento de revolução sopra sobre a
Venezuela. As suas rajadas chocam-se com as de um vento antagónico, o da
contra-revolução, derrotada em duas tentativas de golpe, mas arrogante,
agressiva.
Tudo está em movimento no país, cenário
de uma intensa luta de classes acompanhada com paixão pelas forças
progressistas de todo o Continente.
Logo ao desembarcar no aeroporto Simon
Bolivar, em Caracas, sentimos que muita coisa mudara desde a nossa
ultima visita, há quatro anos. Mas aquilo que separa o hoje do ontem e a
motivação das transformações não é imediatamente identificável.
Uma tensão permanente marca o quotidiano
da Venezuela, vanguarda das lutas revolucionárias na América Latina e,
agora, laboratório ideológico do Continente.
Como quase todas as revoluções, a sua irrompeu contra a lógica aparente da História.
Nela o factor subjectivo foi
determinante. O desafio ao poder oligárquico partiu de um caudilho
militar revolucionário: Hugo Chavez Frias.
DO PROJECTO À REALIDADE
Uma campanha mediática mundial de
desinformação contribuiu para que na Europa seja projectada a imagem de
uma Venezuela em acelerada transição para o socialismo.
Essa imagem deforma a realidade.
Na Venezuela Bolivariana desenvolve-se
um ambicioso processo revolucionário cujo objectivo é a construção do
socialismo. Mas as estruturas económicas do país são ainda
fundamentalmente capitalistas.
A Constituição de 1999 propõe-se
refundar a República num estado social de direito e de justiça.
Estabelece modelos alternativos à chamada democracia representativa e
rejeita o neoliberalismo. O "modelo" de democracia participativa
principiou a adquirir os contornos de um projecto diferente do inicial,
após o lock-out petrolífero de 2003. Mas somente transcorridos dois anos
Hugo Chavez tornou pública a opção pelo socialismo. O imperialismo
reagiu intensificando a sua ofensiva contra a Revolução Bolivariana.
Oficialmente, a Venezuela é hoje uma sociedade em transição para o socialismo.
A fórmula é, porém, enganadora. O núcleo
da base social de apoio ao Presidente, que lhe garantiu sucessivos
êxitos eleitorais, foram desde o início as massas excluídas e não a
classe trabalhadora, o que por si só imprimiu características peculiares
ao processo de transição. A tomada de consciência dos trabalhadores do
petróleo foi lenta. Até ao lock-out que paralisou o país, a PDVSA, o
gigante petrolífero, embora nacionalizado, funcionava como um estado
autónomo controlado por uma Administração contra-revolucionária; a
central sindical amarela era na prática um instrumento da oligarquia e
do imperialismo.
Tendo assumido a Presidência num
contexto desfavorável, Chavez optou nos primeiros anos por uma política
orientada para a rápida redução dos alarmantes níveis de desemprego,
pobreza e exclusão social. Com o apoio da maioria do povo modificou
profundamente a estrutura política e social.
A Revolução proclama o seu carácter
anticapitalista e reafirma a sua decisão firme de construir o
socialismo. Mas, com excepção do sector petrolífero, o capital privado
continua a ser dominante na indústria, na agricultura, no comércio. A
transição não impede que os capitais do petróleo contribuam para a
reanimação do aparelho produtivo hegemonicamente controlado por empresas
privadas. Daí um paradoxo: o sector capitalista da economia cresceu nos
últimos anos em ritmo mais rápido do que o da economia social.
Comentando esse fenómeno, Victor Alvarez, ex-ministro das Indústrias
Básicas e de Minas, afirma que "uma retórica anti-imperialista,
anti-capitalista e socialista não permitiu perceber que, amparada no
investimento social da renda petrolífera e na melhora dos indicadores
sociais, a economia se tenha tornado mais capitalista e a exploração dos
trabalhadores mais acentuada". [1]
O peso do sector mercantil privado
passou de 64,8% em 1999 para 70% em 2009 enquanto o público caiu de 35%
para 30% na mesma década. O sector não petrolífero, sob controlo do
capital privado, contribui com 77,5 % do PIB.
A adesão popular ao projecto de
transição para o socialismo não evitou até agora que a percentagem
correspondente à remuneração do trabalho tenha descido em dez anos de
39,7% para 36,2% enquanto a remuneração do capital tenha subido de
31,69% para 49,18%. [2]
A Venezuela entrou em recessão em 2010,
mas a subida do preço do petróleo abre a possibilidade de alterar, em
benefício da economia social, a situação existente. A transição para o
socialismo, para ser real, exige a ruptura de mecanismos que permitem a
exploração dos trabalhadores assalariados no sector privado.
No cumprimento do artigo 115 da
Constituição, as nacionalizações e expropriações envolvem um volume
enorme de recursos públicos, sob a forma de elevadas indemnizações a
pagar pelo Estado, que são depois investidos pelas empresas privadas em
negócios onde o capital obtém lucros colossais.
O PSUV
Lenine dizia que não há revolução vitoriosa sem um partido revolucionário.
Hugo Chavez assumiu essa evidência.
Sucessivas vitórias eleitorais garantiram-lhe confortáveis maiorias na
Assembleia Nacional Popular e eleger uma maioria de governadores e
autarcas que o apoiavam. Mas essas maiorias diluíram-se rapidamente. A
linguagem revolucionária não se traduzia numa prática revolucionária.
Muitos quadros das organizações políticas do Pólo Patriótico actuavam em
função dos seus interesses pessoais. Alguns romperam com o Presidente e
integram hoje a oposição. Entre outros, destacadas personalidades como
Luis Miquelena, que foi presidente da Assembleia Nacional e ministro do
Interior, os generais Urdaneta e Baduel, ex-ministro da Defesa, o
oficial que desempenhou um papel decisivo na derrota do golpe militar de
2002.
A corrupção alastrava.
O país carecia de um programa de governo debatido com as organizações que tinham apoiado as candidaturas de Chavez.
Em 2007 foi fundado o Partido Socialista
Unido da Venezuela – PSUV no qual se fundiram o Movimento V Republica e
pequenos partidos que até então integravam o Pólo Patriótico.
Transcorridos três anos, contava 7 253
691 inscritos. Esse gigantismo é negativo. Criado quase por decreto, o
PSUV não pôde cumprir o papel de organização revolucionária. Funciona
sobretudo como máquina eleitoral. A maioria dos filiados inscreveu-se
por oportunismo.
Aliás, a exigência de que todos os
partidos que apoiam a Revolução se dissolvessem, impediu a integração no
PSUV do Partido Comunista da Venezuela que se distancia do chamado
Socialismo do Século XXI, a ideologia do governo Bolivariano.
RUMO À DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
O Governo empenha-se em criar condições para uma autêntica democracia participativa.
As Bases Programáticas do PSUV apontam o caminho:
"A tarefa central da Revolução
Bolivariana é desmontar o poder constituído ao serviço da burguesia e do
imperialismo e refundar um poder radicalmente diferente ao serviço do
povo venezuelano e dos demais povos do mundo, isto é, a construção do
poder popular e revolucionário. Todas as tarefas públicas estão
orientadas para a sua consolidação como única garantia da vitória
definitiva da Revolução Bolivariana".
Para promover a participação e
transferir progressivamente para o povo funções tradicionalmente
desempenhadas pelo Estado, o governo criou as Missões Sociais. Destas as
principais são a Missão Zamora, a Missão Che Guevara e a Gran Mision
Vivienda (habitação).
O objectivo da primeira é a erradicação do latifúndio e a entrega de terras expropriadas aos camponeses.
Chavez tem consciência da importância da
soberania alimentar. A Venezuela é na América Latina o país que mais
depende da importação de produtos agro-pecuários. De um total de 95% das
terras com aptidão agrícola apenas 4,2% eram cultivadas no início da
revolução. O avanço da Reforma Agrária (Lei de Terras e do
Desenvolvimento Agrícola) tem sido, porém, muito lento. Quase 30% dos
camponeses eram analfabetos e a entrega de máquinas agrícolas,
fertilizantes e pesticidas aos trabalhadores que receberam terras foi
insuficiente, tal como o apoio de agrónomos e veterinários.
A Missão Che Guevara é um programa para a
formação dos construtores do novo modelo produtivo. Segundo o
Ministério do Poder Popular para a Economia Nacional, essa Missão tem
por objectivo formar cidadãos "com valores socialistas que integrem o
ético, o ideológico, o político e o técnico produtivo, contribuindo para
gerar o maior nível de satisfação social e transformar o sistema
socioeconómico capitalista num modelo económico socialista comunal".
A Gran Mision Vivienda, a mais dinâmica,
já criou centenas de comunidades, algumas quais são pequenas cidades
onde uma vida comunal se desenvolve em ruptura com a mundividencia
capitalista.

Mas foi em Maturin, no Estado de
Monagas, que durante horas convivemos com os moradores das comunidades
"Casas Chinas" e da "Gran Victoria", ambas já habitadas.
A primeira, de casas modestas de um
piso, subiu da terra em regime de auto-construção, tendo sido fornecido
aos seus moradores o projecto e os materiais de construção.
A comunidade Gran Vitoria é uma pequena
cidade com 2500 habitantes, também construída sob a direcção de
engenheiros e técnicos iranianos. Ali o visitante mergulha num mundo não
imaginado em Portugal.
Os apartamentos foram entregues
semi-equipados aos seus moradores. A renda depende das condições
económicas de cada família e é quase simbólica. Cada edifício tem quatro
pisos de quatro apartamentos e cada bloco de quatro prédios constitui
uma comuna responsável pela propriedade colectiva. Visitamos casas do
tipo T2 e T3, atribuídas a famílias conforme a composição do seu
agregado.
Os equipamentos sociais da Gran Victoria
incluem escolas, creches, centro de saúde, farmácia, campo desportivo,
salas comunitárias, quartel de bombeiros, igreja e uma grande loja da
Missão Mercal em que os produtos são vendidos a preços subsidiados. No
complexo funcionam 17 conselhos comunais.
Foi numa das escolas que mantivemos um
prolongado encontro com uma centena de moradores. Ouvimos uma deputada
do Estado, uma escritora, professores, mães de família, trabalhadores
falarem sem inibições das suas vidas antes da conquista da Presidência
por Chavez e da transformação que para todos representou a integração na
Gran Victoria. Em palavras simples, esforçaram-se para nos ajudar a
compreender a complexidade da revolução das existências individuais no
âmbito da comunidade, cimento e alavanca do projecto Bolivariano. A
alegria de viver transparecia das suas intervenções.

Naquele dia o Programa "A Minha Casa Bem
Equipada" permitia à população adquirir electrodomésticos a crédito, a
preços entre 40 a 70% mais baixos que os de mercado. Esta iniciativa do
Governo Bolivariano, coordenada com o sistema financeiro público,
permite a cada família a abertura de um financiamento para aquisição de
frigoríficos, fogões, máquinas de lavar roupa, televisores ou aparelhos
de ar condicionado, a pagar em suaves prestações.
Uma parte dos compradores vive de um
subsídio depositado pelo Estado numa conta nominal. Essa ajuda,
equivalente em Portugal ao rendimento mínimo, é em média de 1200
bolívares (230 euros ao cambio oficial). Dependendo da idade, recebem
por cada filho até 400 bolívares. Uma mãe com quatro filhos pode,
somando o rendimento mínimo ao subsídio, atingir os 2400 bolívares
mensais (430 euros). Essa modalidade de assistencialismo é fonte de
críticas porque familas de desempregados dispõem de um rendimento mensal
superior ao salário mínimo de 1800 bolívares (322 euros).
AMANHÃ IMPREVISIVEL
O contraste em cidades como Maturin (500 mil habitantes) e a capital é transparente.
Em Caracas o forasteiro mergulha numa
atmosfera que pouco difere da irradiada por outras megalopolis latino
americanas. Mais de metade dos 5 milhões de habitantes da Grande Caracas
vive em bairros degradados nos morros que envolvem a cidade. A
desigualdade social é maior do que a existente em Bogotá ou Buenos
Aires. A grande burguesia está instalada no Country Club e noutros
bairros que são guetos de luxo inacessíveis à população.
Caracas exibe para o visitante a imagem
do capitalismo selvagem e não a de uma sociedade rumo ao socialismo. Uma
surpresa: a Venezuela tem o maior número de smartphones BlackBerry do
mundo.
Não conheço na América outra capital com
contradições similares. Encher o depósito do carro de gasolina custa o
equivalente a 30 cêntimos do euro, menos do que uma garrafa de água
mineral.
O tráfego é caótico com engarrafamentos
que paralisam o trânsito durante horas. Na véspera do nosso regresso,
uma chuva torrencial provocou o encerramento do metro e da auto-estrada
que conduz ao aeroporto.
Lenine, após a vitória da Revolução de
Outubro, afirmou que a tarefa da transição para o socialismo das
sociedades russa era infinitamente mais difícil do que fora a conquista
do poder pelo Partido Bolchevique. É oportuno lembrar que teve de
dissolver a Assembleia Constituinte porque as forças da oposição
obtiveram a maioria nas eleições que o Partido convocou.
A advertência é valida para a Venezuela
Bolivariana. O discurso sobre a transição do capitalismo para o
socialismo não move o carro da História. Esse é o tema de um artigo que
será a conclusão natural deste.
15/Dezembro/2011
(1) Victor Alvarez R., Del Estado
burocrático al Estado Comunal, página 198, Editorial Horizonte,
Barquisimeto, Venezuela, Novembro de 2010
(2) Os números citados, com excepção dos referentes ao PSUV, constam dos Informes económicos do Banco Central da Venezuela.
O original encontra-se em http://www.odiario.info/?p=2307
Este artigo encontra-se em http://www.resistir.info/mur/venezuela_16dez11.html
Revisitando a Venezuela (1) - A transição dificil
4/
5
Oleh
Rubens Ragone