Texto apresentado por Anita Leocadia Prestes no seminário promovido pelo PCB por ocasião do 90º aniversário da sua fundação, em 21/03/2012
Em artigo publicado
ainda em 1980, intitulado “A que herança os comunistas devem
renunciar?”, tive a oportunidade de mostrar que, desde os anos 20, a
estratégia do PCB – a revolução democrático-burguesa, agrária e
anti-imperialista ou nacional e democrática, como foi denominada
posteriormente, – tinha um caráter reformista burguês. Tratava-se, na
luta contra o imperialismo, de realizar uma revolução
nacional-libertadora, que viesse a propiciar um desenvolvimento
capitalista autônomo no Brasil, livre, portanto, da
dominação do imperialismo. Tal desenvolvimento capitalista deveria
propiciar as condições para a realização de uma segunda etapa da
revolução, a etapa socialista. Não se percebia que o capitalismo em
nosso país encontrava novas formas de expandir-se, nas condições de
subordinação aos grandes grupos internacionais e de manutenção de
relações de produção não capitalistas na agricultura. (Prestes,
A.L.,1980)
O reformismo na política do PCB se
explicitava através dessa concepção da revolução em etapas, marcada pelo
ideal nacional-libertador, uma variante da ideologia nacionalista,
de cunho burguês, cuja presença tornou-se expressiva na cultura e na
política brasileiras a partir da Primeira Guerra Mundial. Podemos dizer
que as concepções nacional-libertadoras adotadas pelo PCB frutificaram
no Brasil graças à sua aceitação por amplos setores sociais
influenciados pelo pensamento nacionalista. Entretanto, como advertiu E.
Hobsbawm, “o perigo real para os marxistas é o de aceitar o
nacionalismo como ideologia e programa, ao invés de encará-lo
realisticamente como um fato, uma condição de sua luta como socialista”
(Hobsbawm, 1980: 310).
Também contribuíram para a adoção pelo
PCB da concepção etapista da revolução as resoluções aprovadas em 1928,
no VI Congresso da Internacional Comunista – entidade à qual o PCB
estava filiado desde 1924 -, e reiteradas em 1929, na 1a Conferência dos
PPCC da América Latina. Não se percebia e rejeitava-se algo que havia
sido levantado nessa mesma ocasião por José Carlos Mariátegui: o caráter
socialista da revolução na América Latina, embora o comunista peruano
registrasse a necessidade de considerar as peculiaridades do capitalismo
em cada país do nosso continente e defendesse a luta por um socialismo
que não fosse “nem cópia nem decalque, mas sim invenção heróica” dos
nossos povos (Mariáteguei, 2008: 153). Mariátegui escrevia:
Sem prescindir do
emprego de nenhum elemento de agitação anti-imperialista, nem de nenhum
meio de mobilização dos setores sociais que eventualmente podem
contribuir para esta luta, a nossa missão é explicar e demonstrar às
massas que somente a revolução socialista poderá opor ao avanço do
imperialismo um obstáculo definitivo e verdadeiro. (Idem: 51)
Sem negar que a revolução socialista
constitui um processo, que em cada país terá suas particularidades,
Mariátegui verificou que, no século XX, o imperialismo penetrara
profundamente e se articulara estreitamente com as diversas relações de
produção existentes em cada nação do continente latino-americano.
Tornara-se, portanto, impossível derrotar o imperialismo sem avançar no
caminho da revolução socialista. O problema era, e continua sendo, como,
na prática, empreender tal caminho sem desviar-se para o etapismo e o
decorrente reformismo, de acordo com o qual a solução revolucionária
acaba sendo abandonada.
Como não poderia deixar de ser, a
fidelidade a uma falsa estratégia levou o PCB a adotar táticas que
mudavam ao sabor dos acontecimentos. Embora os comunistas estivessem
sempre nas primeiras fileiras dos lutadores por todas as causas justas
do povo brasileiro, o Partido carecia de autonomia ideológica,
ou seja, de um programa revolucionário que contribuísse para a
aglutinação e a formação das forças sociais e políticas capazes de
conduzir as lutas de nosso povo rumo à revolução socialista. Ficava-se
sempre a reboque de setores liberais e/ou nacionalistas; perdia-se a
oportunidade de, através das lutas por objetivos parciais, organizar e
educar as massas para a necessidade de ir adiante, de preparar-se para a
revolução socialista.
Um bom exemplo da
permanência dessa falsa estratégia de que estamos falando é a aprovação
da “Declaração de Março” de 1958 pela direção do PCB. Com esse
documento, abandonava-se a tática esquerdizante do “Manifesto de Agosto”
de 1950, reiterada no IV Congresso de 1954, de derrubada do Governo, a
qual era substituída por uma nova formulação – a luta por um governo nacionalista e democrático,
nos marcos do regime capitalista, enquanto a estratégia não era tocada.
Naquele momento, a aprovação da “Declaração de Março” contribuiu para
garantir não só a unidade como a própria sobrevivência do PCB,
seriamente abalado por grave crise, provocada em grande medida pelos
acontecimentos relacionados com o XX Congresso do PCUS (Partido
Comunista da União Soviética), realizado no início de 1956.
Cabe ressaltar que, embora tivesse
contribuído para a elaboração e a aprovação da “Declaração de Março”,
com o objetivo de manter a unidade das fileiras partidárias, Luiz Carlos
Prestes, então secretário-geral do PCB, revelaria preocupação com o
perigo de uma “tática reformista, que nos colocaria a reboque da
burguesia”. Em artigo publicado na mesma ocasião, Prestes escrevia:
A crítica superficial
de nossos erros políticos pode conduzir agora ao erro oposto, à
preocupação exclusiva com o movimento que se processa gradualmente,
abandonando a meta revolucionária da classe operária. (PCB, 1980:35)
A conciliação com as tendências
reformistas na direção do PCB, com o intuito de assegurar a unidade
partidária, foi a atitude adotada por Prestes durante cerca de vinte
anos, até o final da década de 70, quando viria a romper com o Comitê
Central (Prestes,L.C.,1980), convencido de que se tornara inviável
transformar o PCB num partido revolucionário, ou seja, numa organização
que superasse o reformismo, explicitado principalmente por meio da
ideologia do nacional-desenvolvimentismo e da concepção da revolução por
etapas (Prestes, 2010: 162).
O esforço para alcançar a unidade a qualquer preço
marcou fortemente a história do movimento comunista internacional e não
poderia deixar de se fazer presente no PCB, uma vez que, desde sua
fundação, o partido fez parte desse movimento. Tal empenho,
frequentemente, teria como consequência o abandono de posições de
princípio e, em particular, a renúncia aos objetivos revolucionários dos
comunistas e a conciliação com as tendências reformistas.
A luta por um governo nacionalista e
democrático, a partir de 1958, alimentou uma forte ilusão nas
possibilidades de conquistar, através da pressão de massas, uma
correlação de forças dentro do governo que permitisse a adoção de
medidas capazes de assegurar o desenvolvimento de um capitalismo autônomo e democrático
no Brasil. A partir de tal patamar, previa-se que os comunistas
poderiam abrir caminho para as transformações de caráter socialista no
país.
Em que medida, contudo, os comunistas atuavam efetivamente no sentido de formar uma força política
capaz de conduzir tal processo revolucionário no Brasil? Na realidade,
tentava-se a formação de uma aliança de classes e setores sociais
supostamente possuidores de interesses e reivindicações comuns, na luta
contra o imperialismo e o latifúndio e pela democracia. Entretanto, não
se levava em conta algo que o conceito de bloco histórico, proposto por A. Gramsci, pressupõe: o momento político
dessa aliança. “Sua constituição está assentada em classes ou grupos
concretos definidos pela sua situação na sociedade, mas as idéias
cumprem um papel fundamental no que se refere à sua coesão.” Em outras
palavras, no bloco histórico, há “uma estrutura social – as classes e grupos sociais – que depende diretamente das relações entre as forças produtivas; mas também há uma superestrutura ideológica e política”.
(Bignami, s. d.: 27) Gramsci escrevia que, segundo Marx, “uma persuasão
popular tem, com freqüência, a mesma energia de uma força material”
(Gramsci, 2001,V.1: 238).
Os elementos citados da concepção de bloco histórico
permitem perceber o frequente empobrecimento de tal conceito no âmbito
dos partidos comunistas, pois esse fenômeno marcou, de uma maneira
geral, grande parte do movimento comunista mundial. Nas fileiras do PCB
semelhante postura teria como consequência a subestimação pelo trabalho
ideológico de formação teórica e política não só dos seus quadros como
também de lideranças populares. A incompreensão da necessidade de criar
uma força política, ou um bloco histórico contra-hegemônico,
capaz de conduzir o processo revolucionário à vitória, condicionou o
desarmamento ideológico e político dos comunistas diante do bloco histórico dominante e a inevitável capitulação frente ao reformismo burguês. (Prestes, 2010a)
A partir da IV Conferência Nacional do
PCB, realizada em dezembro de 1962, passaria a predominar na direção do
Partido, em particular no âmbito da sua Comissão Executiva, a tese de
concentrar esforços no combate à política de conciliação com o imperialismo e o latifúndio seguida pelo Governo Goulart e na luta pelas Reformas de Base.
Tal posição representava uma primeira vitória da “tendência
esquerdizante”, liderada pelos dirigentes Carlos Marighella, Mário Alves
e Jover Telles, integrantes da Comissão Executiva Nacional (Falcão,
1993: 221).
Entretanto, inexistia no Brasil a força social e política, unificada por idéias comuns e preparada para viabilizar na prática o rompimento com a política de conciliação e a realização das Reformas de Base.
Inexistia no país um poderoso movimento popular unido e organizado -
dirigido por lideranças providas de propostas política e ideologicamente
definidas e adequadas ao momento -, capaz de golpear as forças
reacionárias internas e externas e conquistar o poder. Esta seria a
única maneira efetiva de assegurar a realização de reformas, cujo
conteúdo iria ferir profundamente os interesses do grande capital
nacional e internacional e dos grandes proprietários de terras.
As concepções nacional-libertadoras,
presentes tanto na estratégia política do PCB quanto em grande parte do
discurso das forças nacionalistas e de esquerda, sob a influência
dominante da ideologia nacional-desenvolvimentista, alimentaram as
ilusões num hipotético anti-imperialismo da uma suposta burguesia
nacional e na possibilidade de, sob a pressão das manifestações das
forças nacionalistas e democráticas e, em particular, do movimento
sindical, levar o presidente João Goulart a realizar reforma ministerial
que permitisse o estabelecimento de um governo nacionalista e democrático
e a implementação das Reformas de Base. Cogitava-se ainda de uma
reforma constitucional, mesmo que para tal fosse necessário passar por
cima do Congresso Nacional.
Com o golpe
reacionário de 1964 e a repressão que imediatamente se desencadeou
contra as forças democráticas e de esquerda, a situação do PCB se tornou
particularmente difícil. O Partido não esperava o golpe e não se havia
preparado para enfrentá-lo. Mesmo na Comissão Executiva do Comitê
Central, onde predominavam as posições esquerdistas, não haviam sido
tomadas medidas para fazer frente à repressão. A maioria esquerdista na
Comissão Executiva acreditava que a pressão exercida sobre Jango o faria
avançar no caminho da superação da conciliação e da
realização das reformas, até mesmo ultrapassando os limites da
legalidade constitucional. Os adeptos das posições esquerdistas
coincidiam com os adeptos das concepções reformistas ao confiarem, tanto
uns quanto os outros, no “esquema militar” de Goulart, abdicando na
prática do trabalho de organização, conscientização e mobilização
popular.
Diferindo da correlação de forças
existente logo após o golpe na Comissão Executiva, nos anos que se
seguiram, iria aprofundar-se, no âmbito do Comitê Central do PCB, uma
crescente divisão entre a maioria, favorável à manutenção da orientação
política inaugurada em 1958 e confirmada no V Congresso, realizado em
1960, e a minoria que se agrupava na chamada “corrente revolucionária”.
Esta passaria a defender a adoção imediata da luta armada, uma tática que visava a derrubada da ditadura através da insurreição armada e a instauração de um governo revolucionário, mas a estratégia da revolução nacional e democrática não era questionada. (Marighella, 1979: 49, 58, 63, 104)
O VI Congresso do PCB, realizado no
final de 1967, foi um marco na luta contra a vaga esquerdista que
ameaçava não só a unidade do Partido quanto sua própria sobrevivência.
Uma possível vitória das posições esquerdistas no VI Congresso, com a
adoção imediata da luta armada contra a ditadura, teria levado o PCB ao
esfacelamento, como aconteceu com os partidos e organizações de esquerda
que assim procederam. Como a prática viria a mostrar, inexistiam no
Brasil, à época, condições para o desencadeamento de guerrilhas ou de
outras formas de luta armada, conforme a vontade de muitos militantes,
frustrados com o golpe de 64 e impacientes por transformar seus desejos
em realidade.
Prestes percebeu que, naquele momento
histórico, era necessário evitar uma segunda derrota, maior ainda que a
de abril de 1964, quando se conseguiu impedir o esfacelamento da
organização partidária. Tratava-se de somar forças para que, no VI
Congresso, as teses dos defensores da deflagração imediata da luta
armada fossem rejeitadas. O secretário-geral optou pela conciliação com a
maioria reformista para derrotar o inimigo principal naquele momento – o
radicalismo de esquerda. Uma vez alcançado tal objetivo, inaugurava-se
uma nova etapa da luta ideológica nas fileiras partidárias.
A partir do VI Congresso, as
divergências de Prestes com a maioria do Comitê Central do PCB se
acentuaram e se tornaram cada vez mais graves. Se o Comitê Central
passara a centrar todos seus esforços na luta por um governo antiditatorial,
Prestes considerava que “os comunistas ao lutarem pela plataforma comum
da frente antiditatorial, não ....[deveriam ocultar]... seu programa
revolucionário,(...) fazendo esforços para ganhar para suas posições
revolucionárias, para seu programa, as forças fundamentais da
revolução”.1 Fundamentando sua posição, recorria à citação de Lenin:
Só são fortes os lutadores que se apóiam em interesses reais claramente compreendidos de determinadas classes,
e todo fator que oculte estes interesses de classe, que desempenham já
um papel dominante na sociedade atual, não pode senão enfraquecer os
lutadores. (Lenin, Obras Completas, ed. Cartago, tomo II, p. 317; grifos do autor)
A consulta a documentos inéditos de
Prestes – pois, ele, em minoria, não podia pronunciar-se abertamente em
discordância com o CC – é reveladora do combate por ele travado no
âmbito do Comitê Central contra as tendências reformistas de direita,
que iriam se acentuando cada vez mais na política do PCB. Eis um exemplo
da posição por ele defendida:
Cabe (...) ao Comitê Central decidir se, a pretexto da tática, devemos, em nossa agitação e propaganda, nos referirmos exclusivamente às reivindicações imediatas mobilizadoras das massas, à plataforma unitária da frente única
antiditatorial e à luta por um eventual governo das forças antiditatoriais; ou se devemos utilizar a agitação e propaganda igualmente
(e, em alguns casos, principalmente), para levar ao conhecimento da
classe operária e seus aliados o programa revolucionário (...) de nosso
Partido e a necessidade de lutar, independentemente dos compromissos que
possamos realizar com as demais forças antiditatoriais, pela conquista
de um governo revolucionário, capaz de dar início à aplicação daquele
programa. (Idem; grifos do autor)
Na prática, a atividade do PCB ficaria
limitada à tática, sendo deixados de lado os objetivos estratégicos do
Partido. Com semelhante orientação, a organização e a conscientização
dos trabalhadores, assim como a sua formação com vistas à revolução,
foram abandonadas. O PCB deixava de distinguir-se das demais forças
antiditatoriais, perdia a oportunidade de afirmar-se como organização
revolucionária, mantendo a independência ideológica. O PCB enveredava
definitivamente pelo caminho do reformismo.
Nos anos 70, com a intensificação da
repressão contra o PCB, foi necessário transferir uma parte do Comitê
Central (CC) para o exterior do País. A partir de 1975, seria feita a
reorganização das atividades do CC na Europa. A correlação de forças no
seu interior se definiu no transcorrer dos debates efetuados e das
resoluções tomadas a partir do início do seu funcionamento no exterior.
Num extremo, estava Prestes, o secretário-geral, apoiado por um pequeno
número de dirigentes; seu empenho na defesa das posições que lhe
pareciam mais justas e no combate ao reformismo na direção do PCB não o
impedia de desenvolver esforços visando manter a unidade do CC e do
Partido. No outro extremo estava Armênio Guedes, contando com o apoio de
Zuleika Alambert, simpáticos ao eurocomunismo e isolados no âmbito do
CC, mas dispondo do controle da redação de Voz Operária e do
respaldo da chamada Assessoria do CC, composta por um grupo de
intelectuais residentes na Europa e também adeptos do eurocomunismo. No
centro, havia o “pântano”2 – a maioria do CC -,
composta por elementos conservadores, acomodados, sem posições
definidas, e, por essa razão, aferrados a uma suposta defesa da “linha
do VI Congresso” do PCB. Seu objetivo era a manutenção do status-quo,
ou seja, dos seus cargos na direção do PCB. Com esse propósito,
buscavam a conciliação dos extremos, principalmente a conciliação com
Prestes, cuja presença na secretaria-geral constituía um aval importante
para a sobrevivência do próprio CC frente ao Partido no Brasil, assim
como frente ao PCUS e aos demais partidos comunistas.
As principais divergências entre Prestes e a maioria do CC diziam respeito à definição da estratégia da revolução nacional e democrática, reafirmada no VI Congresso, e à chamada “questão democrática”,
ou seja, à posição dos comunistas diante da democracia burguesa.
Prestes se convencera de que o caráter da revolução brasileira só
poderia ser socialista e que se tornara necessário abandonar a definição
estratégica do VI Congresso do PCB. A maioria do CC se recusava a
enfrentar essa discussão. Dessas questões derivavam muitas outras; em
particular, o tipo de organização partidária necessária para enfrentar
tais desafios políticos.
O embate entre a maioria do CC,
acomodada e defensora de concepções ultrapassadas, marcadas pelo
reformismo de direita, e o pequeno grupo solidário com o
secretário-geral assumiu tais proporções que, para Prestes, ficou
evidente que se tornara impossível levar aquele CC a transformar-se na
direção de um partido efetivamente comprometido com a revolução e os
ideais socialistas e comunistas. Chegara a hora de o secretário-geral do
PCB romper com a conciliação, deixando de lado a fidelidade a uma falsa unidade,
comprometida com o imobilismo, o conservadorismo e, principalmente, com
o abandono dos objetivos revolucionários consagrados nos documentos
partidários. Prestes decidira afastar-se da direção do PCB, mas,
admitindo ser o principal responsável pela crise deflagrada, considerava
necessário ouvir previamente a militância partidária, oportunidade que
parecia estar próxima com a anistia, prevista ainda para aquele ano de
1979 e a possibilidade de regresso ao Brasil. Por isso, permaneceu
provisoriamente no CC. Sua ruptura com a direção do PCB ficou consagrada
na “Carta aos comunistas” de março de 1980, na qual afirmava a
necessidade de empreender uma virada drástica em relação à linha
política aprovada no VI Congresso do PCB:
É necessário, agora,
mais do que nunca, ter a coragem política de reconhecer que a orientação
política do PCB está superada e não corresponde à realidade do
movimento operário e popular do momento que hoje atravessamos. Estamos
atrasados no que diz respeito à análise da realidade brasileira e não
temos resposta para os novos e complexos problemas que nos são agora
apresentados pela própria vida. (Prestes, L.C., 1980: 12)
Diante de tal situação, qual
era a atitude da maioria do Comitê Central do PCB? Em nome de uma
suposta unidade partidária, o CC do PCB trilhava o caminho de tentar
garantir sua própria sobrevivência a qualquer preço, ou seja, manter o status-quo,
recusando-se a realizar as mudanças necessárias tanto no terreno
político quanto no da organização partidária. Para Prestes, a política
de organização deveria estar sempre associada estreitamente ao caráter
da política geral do Partido e subordinada às suas metas
revolucionárias. Segundo Prestes, o abandono dos objetivos
revolucionários pela direção do PCB a levara a assumir atitudes
reformistas e de capitulação diante da burguesia e dos inimigos de
classe.
Tendo assumido a responsabilidade principal pelos erros cometidos pelo Partido, Prestes escrevia na “Carta aos comunistas”:
O oportunismo, o
carreirismo e compadrismo, a falta de uma justa política de quadros, a
falta de princípios e a total ausência de democracia interna no
funcionamento da direção, os métodos errados de condução da luta
interna, que é transformada em encarniçada luta pessoal, em que as
intrigas e
calúnias passam a ser a
prática corrente da vida partidária adquiriram tais proporções, que me
obrigam a denunciar tal situação a todos os comunistas.
(Idem:16)
Diante da situação crítica vivida pelo
PCB, Prestes apelava a todos os militantes para que tomassem “os
destinos do movimento comunista em suas mãos” (idem: 17), mobilizando-se
para a conquista da legalidade do Partido e a realização do seu VII
Congresso em condições efetivamente democráticas, condenando, ao mesmo
tempo, qualquer acordo com a ditadura para a conquista da legalidade.
“Compromisso que colocaria o Partido a reboque da burguesia e a serviço
da ditadura e inaceitável, portanto, à classe operária e a todos os
verdadeiros revolucionários” (idem: 21-22). Compromisso, que, afinal,
foi assumido pelo Comitê Central do PCB, após o regresso dos seus
membros do exílio.
Em publicação lançada à época pelos
colaboradores de Prestes, era apresentada uma súmula das principais
divergências entre Prestes e o CC do PCB:
1) Enquanto Prestes se coloca ao lado da classe operária e dá seu apoio aos metalúrgicos em greve, (...) o CC e seu jornal a Voz da Unidade estão contra a greve.
2) Enquanto Prestes considera (...) que a democracia tem sempre um conteúdo de classe determinado (...), o CC e a Voz da Unidade “teorizam” a respeito de uma democracia “pura” e acima das classes (...).
3) Enquanto Prestes
(...) considera essencial (...) acumular forças para que se possa chegar
à liquidação do regime capitalista e à revolução socialista; as
posições do CC (...) convergem no sentido de não questionar a dominação
capitalista (...).
4) Enquanto Prestes
diz claramente que a ditadura ainda está aí e é necessário derrotá-la
(...), o CC do PCB evita referir-se ao regime como a uma ditadura e
(...) alguns membros do CC se mostram favoráveis a apertar a “mão
estendida” do gen. Figueiredo (...).
5) Enquanto Prestes
considera que o centro da atividade dos comunistas deve ser o trabalho
de massas (...), o CC do PCB e seu jornal (...) fazem do Parlamento o
lugar privilegiado da luta pela democracia.
6) Enquanto Prestes
(...) defende a formação de uma ampla frente democrática e, ao mesmo
tempo, a unificação das forças de “esquerda” dentro da frente
democrática (...), o CC do PCB (...) quer uma frente democrática da qual
estejam excluídas as diferentes forças de “esquerda”, (...) na qual os
comunistas estejam a reboque da burguesia liberal.
7) Enquanto Prestes
considera que “a legalização do PCB terá que ser uma conquista do
movimento de massas e de todas as forças realmente democráticas em nosso
País”, o CC do PCB revela disposição de aceitar o acordo que lhe vem
sendo proposto pela ditadura.
8) Enquanto Prestes
mantém uma posição de firme apoio à URSS e a todo o campo socialista, os
membros do atual CC têm revelado uma posição cada vez mais clara do que
poderia ser chamado de “antissovietismo envergonhado”.
9)
Enquanto Prestes está empenhado (...) em fazer uma autocrítica profunda,
tanto da política do PCB, como de seus métodos de organização, o CC não
mostra a menor disposição à autocrítica e vem intensificando sua
atividade terrorista na condução da luta interna (...).3
Durante os anos 80, os últimos anos de
vida de Prestes, ele não só teve ativa participação na vida política
nacional, como dedicou particular atenção à denúncia da continuidade do
regime ditatorial no governo do general Figueiredo, assim como à
denúncia do que ele chamou de um “poder militar” acima
dos poderes da República, inclusive após a eleição indireta de Tancredo
Neves e a promulgação da Constituição de 1988. Da mesma forma denunciou
com firmeza a capitulação do CC perante o Governo Figueiredo e frente à
“transição” à chamada Nova República, dirigida pelas classes dominantes
no Brasil.
Devo assinalar que a “Carta aos
comunistas” teve grande repercussão e levou numerosos militantes
comunistas a tentarem “salvar” o PCB, reorganizá-lo ou estruturar novas
organizações em bases verdadeiramente revolucionárias. Intentos estes
fracassados e reveladores da inexistência das condições necessárias para
a organização imediata de um partido revolucionário, o que foi
compreendido por Prestes, levando-o, nos últimos anos de sua vida, a
desaconselhar novas tentativas nesse sentido. Durante Encontro Estadual
dos comunistas gaúchos que se orientavam pela “Carta aos Comunistas”,
realizado em janeiro de 1984, Prestes explicava sua posição, afirmando
que “um partido revolucionário só pode surgir de cima para baixo, por
intermédio de um grupo ideológico firme, porque é a ideologia que une os
comunistas e os distingue de outras forças”.4
Na verdade, não era só o PCB que
atravessava grave crise. Tratava-se de uma crise do movimento comunista
internacional e do chamado “socialismo real”. Crise esta que Prestes
havia detectado no PCB uma década antes de a mesma “explodir” no cenário
mundial e, ao mesmo tempo, produzir, no Brasil, com a criação do PPS, o
desmoronamento do PCB. A “Carta aos comunistas” antecipou questões que
viriam a colocar-se, com grande intensidade, para os comunistas no mundo
inteiro, uma década mais tarde. Muitas dessas questões mantêm sua
atualidade.
Prestes não alimentava ilusões na
possibilidade de uma rápida reconstrução do Partido Comunista, que
pudesse dar origem a uma organização efetivamente revolucionária. Não
alimentava ilusões quanto à rapidez do avanço do movimento
revolucionário no Brasil. Em carta a um amigo, ele escrevia:
Tudo indica (...) que
marchamos para sério agravamento da situação social. E como não temos um
partido revolucionário e as massas trabalhadoras estão desorganizadas,
teremos lutas esparsas que serão fatalmente esmagadas pela força das
armas. Será este infelizmente o caminho sangrento da revolução
brasileira até que, através dele, surja o partido revolucionário, capaz
de organizar e unir a classe operária e de levá-la à abertura do caminho
para o socialismo em nossa terra. Isto pode parecer muito desalentador e
pessimista, mas não é. É realismo de quem tem a certeza de que desse
processo surgirá, como necessidade histórica, o verdadeiro partido
revolucionário da classe operária. Estamos pagando pelo nosso atraso
cultural, pela escravidão de 1888, pela independência com o príncipe da
Casa de Bragança, etc.5
Termino minha participação neste debate
agradecendo a oportunidade que me foi concedida de expor minhas idéias a
respeito do reformismo na história do PCB e desculpando-me pela
abordagem superficial aqui apresentada, decorrente das limitações
impostas ao ter de resumir uma problemática de grande amplitude.
Gostaria de informar a todos os presentes que as questões hoje aqui
abordadas, estão detalhadamente apresentadas e amplamente documentadas
em livro que estarei lançando nos próximos meses, intitulado Luiz Carlos Prestes: o combate por um partido revolucionário (1958-1990).
Alguns dos documentos aqui citados estão reproduzidos no “sítio” do Instituto Luiz Carlos Prestes (www.ilcp.org.br).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BIGNAMI, Ariel. El pensamiento de Gramsci: una introduccion. 2a ed. Buenos Aires, Editorial El Folleto, s.d.
FALCÃO, João. Giocondo Dias, a vida de um revolucionário (meio século de história política do Brasil). Rio de Janeiro, Agir, 1993.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Volume 1. 2a ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001.
HOBSBAWM, Eric J. “Nacionalismo e marxismo”. In: Jaime Pinsky (org.). Questão nacional e marxismo. São Paulo, Ed. Brasiliense, p. 294-323, 1980.
MARIÁTEGUI, José Carlos. Escritos fundamentales. Buenos Aires, Acercándonos Ediciones, 2008.
MARIGHELLA, Carlos. Escritos de Carlos Marighella. S.P., Ed. Livramento, 1979.
PCB: vinte anos de política (1958-1979) (documentos). São Paulo, LECH – Livraria Editora Ciências Humanas, 1980.
PRESTES, Anita Leocadia. “A que herança devem os comunistas renunciar?”. Oitenta, Porto Alegre, LP&M, nº 4, 1980, p.197-223.
PRESTES, Anita Leocadia. Os comunistas brasileiros (1945-1956/58): Luiz Carlos Prestes e a política do PCB. São Paulo, Ed. Brasiliense, 2010.
PRESTES, Anita Leocadia, “Antônio Gramsci e o ofício do historiador comprometido com as lutas populares”, Revista de História Comparada, Volume 4, nº 3, , p.6–18, Dezembro/2010a.
PRESTES, Luiz Carlos. Carta aos comunistas. São Paulo, Ed. Alfa-Omega, 1980.
1 ALMEIDA, Antônio (pseudônimo de Prestes), documento original datilografado, sem título, 23 pgs, 08/04/1969, (Arquivo particular da autora); cópia em Coleção Luiz Carlos Prestes, Arquivo Edgard Leuenroth/UNICAMP, pasta 009.
2 “Pântano” – expressão empregada por
Lenin, que escrevia: “Praticamente não há partido político com luta
interna que prescinda desse termo, que serve sempre para designar os
elementos inconstantes que vacilam entre os que lutam.” (LENIN,V.I. Obras escogidas en tres tomos. Moscú, Ed. Progreso, 1961, v. 1, p. 296 (nota).
3 Ecos à Carta de Prestes, n. 2, maio/1980; grifos do texto.
4 PRESTES, Luiz Carlos, “Declarações”
(transcrição não revista) em “Resoluções Políticas do 3º Encontro
Estadual dos comunistas gaúchos que se orientam pela Carta aos comunistas
do camarada Luiz Carlos Prestes” (janeiro/1984), documento
datilografado (cópia xerox), 28 pgs. “Coleção Luiz Carlos Prestes” no
Arquivo Edgard Leuenroth/UNICAMP, Manuscritos, PCB-CC, pasta 242;
“Documento do PCML – Partido Comunista Marxista Leninista”, 28 folhas,
janeiro/1984, “Informes dos Órgãos de Segurança sobre Luiz Carlos
Prestes” (Confidencial).
5 PRESTES, Luiz Carlos. “Carta à Aloyzio Neiva Filho”, Rio,
16/01/1983, 3 pgs.;documento original, datilografado. (Arquivo
particular da autora)
A ESTRATÉGIA NACIONAL-LIBERTADORA E O REFORMISMO NA HISTÓRIA DO PCB
4/
5
Oleh
Rubens Ragone