
Mauro Iasi*
Diante das manifestações de massa a presidente Dilma, dizendo ouvir
as “vozes das ruas”, acena com cinco pactos com a intenção explícita de
tentar reverter a explosão social que colocou em evidência um profundo
descontentamento da população brasileira.
Deve haver um problema de acústica em Brasília uma vez que há um
certo tempo os trabalhadores falam uma coisa e os governos ouvem outra.
As manifestações se iniciaram por protestos contra o aumento das
passagens e se desdobraram para uma multifacetada pauta que tem por
centro a demanda por educação, saúde, contra os gastos com a Copa e seus
efeitos perversos, como as remoções, e contra uma forma política que
mostra seus limites com representantes que não representam, eleitos por
muitos e defendendo os interesses de poucos.
Depois de combater e tentar estigmatizar os manifestantes, a grande
mídia passou a tentar pautar o movimento e impor bandeiras, ou enfatizar
algumas que estavam lá diluídas no descontentamento geral, como a
ênfase na luta contra a corrupção. Pouco a pouco o movimento social vai
resgatando suas bandeiras clássicas e se diferenciando de uma direita
conservadora que pegou carona nas manifestações.
Em síntese a resposta da presidente se materializa em cinco “pactos”:
primeiro um pacto pelo equilíbrio e responsabilidade fiscal, um pacto
pela reforma política, um pacto contra a corrupção, um pacto pela saúde e
um pela chamada mobilidade urbana. Ninguém pode negar que o governo
petista se mostrou especialista em pactos, mas estes se demonstram
pateticamente inócuos diante das demandas levantadas pelas massas
rebeladas. Vejamos porque.
Já nas resoluções de seu 12 Encontro Nacional do PT que antecedeu a
primeira vitória de Lula para a presidência se falava em resgatar a
dívida social e definia-se a prioridade na democratização da sociedade
brasileira que se materializaria na reforma agrária, na diminuição da
pobreza, no acesso à saúde, educação e outros direitos, a democratização
política e dos meios de comunicação. Isso se daria a partir de três
eixos: o social, o nacional e o democrático.
No entanto, nas resoluções se afirma que a viabilidade destes três
eixos formalmente prioritários se subordinaria a possibilidade de um
quarto que, desta forma, se torna a verdadeira prioridade. Dizem as
resoluções: “Avançar na direção destes objetivos implicará em um
persistente esforço de crescimento econômico”, e logo adiante continua
afirmando que “é a aceleração do crescimento econômico, acompanhada da
distribuição de renda e riqueza que permitirá integrar expressivos contingentes da população brasileira no mercado”.
Notem que a prioridade é o social, mas este só se efetivará com o
crescimento econômico que permitirá a integração ao mercado. Sabemos que
no mesmo encontro se define que este crescimento que tornaria possível a
integração se daria por meio de “um novo contrato social”, um pacto
entre os trabalhadores e os “empresários de qualquer porte” (12 Encontro
do PT, apud Iasi, 2004: 510-512).
Em síntese se esperava garantir as demandas sociais dos trabalhadores
e da maioria da população por meio do desenvolvimento econômico
capitalista e para estes seria garantido o lucro
derivado da apropriação privada graças ao desenvolvimento do mercado
interno, garantindo “previsibilidade para o capital produtivo”.
Esta previsibilidade e garantias ao capital para produzir e crescer a
economia, daí impostos e daí a atenção às demandas teria como um de
seus pilares o chamado saneamento do Estado e este tem entre seus
instrumentos principais a chamada lei de responsabilidade fiscal. A base
da Reforma do Estado, na verdade uma contra-reforma, está no princípio
segundo o qual o Estado só pode gastar nos limites do que arrecada.
Desta forma a dita lei de responsabilidade limita um percentual que o
Estado pode comprometer com contratação de pessoal, ainda que,
compreensivelmente, não estabeleça nenhum percentual para o
comprometimento financeiro com a sangria produzida pela dívida e
pagamento de juros aos bancos e especuladores.
A questão que aqui nos interessa é que o Estado vê constrangido seu
poder de enfrentar as demandas por educação, saúde, moradia, transporte e
outras pela forma de políticas públicas, pois isso envolve,
necessariamente a contratação de pessoal o que explodiria os limites
impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal. A solução encontrada,
primeiro nos governos do PSDB em São Paulo e depois generalizada pelo
governo Lula, foi o das parcerias público privadas. Através deste
expediente inconstitucional (fato resolvido no governo Lula pela mudança
da constituição que permite a criação de empresas públicas de direito
privado), uma empresa ou organização social pode prestar o serviço que
seria público usando seu pessoal, evidentemente contratos via CLT e não
pelo Regime Jurídico Único que rege o funcionalismo, cobrando do poder
público pelo serviço.
De outro lado, como no caso dos transportes, reverte-se a tendência
inicial de criar empresas públicas para realizar este serviço essencial e
devolvem a exploração dos transportes públicos a empresários (que
acidentalmente se tornam, agradecidos contribuintes contumazes às
campanhas eleitorais do PT), subsidiando o serviço.
Desta maneira, o primeiro pacto significa, em alto e bom som, que
nada vai mudar na linha adotada, isto é, o governo não vai rever a
privatização direta ou indireta dos serviços e continuará apoiando as
parcerias e concessões, contingenciando os investimentos públicos e
preservando o equilíbrio que permite formar os superávits que destinam a
maior parte do PIB para o pagamento de serviços financeiros (títulos e
juros da dívida).
Segundo Evilásio Salvador (2012: 127), entre 2000 e 2009 o fundo
público transferiu o equivalente a 45% do PIB para o capital
financeiro, um valor que seria possível, ainda segundo o mesmo autor,
bancar o programa Bolsa Família por 108 anos.
Afirmar, portanto, um pacto pela manutenção da responsabilidade
fiscal em primeiro lugar, é responder uma demanda do grande capital que
tem sido uma das principais razões do estrangulamento das políticas
publicas que demandam as “vozes das ruas”.
O segundo pacto procura resolver o total descrédito com a forma atual
da representação política e que se articula ao pretenso terceiro eixo
do programa: o democrático. O PT se propunha aprofundar a democracia, no
entanto, a experiência política dos governos de pacto de classe
promovidos pelo PT não alterou no essencial a forma política que havia
se consolidado no Brasil nos marcos do que se costuma definir como
“presidencialismo de coalizão” (Limonge e Figueiredo, 1995/1996). O que
há de característico nesta forma é que presidente eleito compõe uma
bancada de sustentação por meio de uma série de trocas e favores que vão
desde a oferta de cargos no governo, liberação de verbas via emendas,
até financiamento de campanhas. Ao invés de promover uma reforma
política que supere os limites desta forma altamente conservadora, e a
verdadeira base para os processos conhecidos de corrupção, o governo
petista se amoldou a esta forma e construiu sua governabilidade sobre a
base de alianças com partidos conservadores como o PMBD, o PTB, o antigo
partido de Maluf – o PP e outras siglas fisiológicas, como o PSC de
Marcos Feliciano.
A reforma política não ocorreu porque não era o interesse do PT e de
sua base aliada. Mas esta é uma questão que esbarra em algo maior e que
se liga às explosões sociais ora vivenciadas: a governabilidade.
Chegando à presidência sem maioria parlamentar, nos marcos de um
presidencialismo de coalizão, os governos petistas tinham diante de si
duas alternativas. A primeira é a que foi trilhada e se render a uma
governabilidade de cúpula, por acordos com partidos de centro e
conservadores, formar uma bancada de sustentação e garantir suas
reeleições. A segunda é, diante da correlação de forças desfavorável do
ponto de vista institucional burguês, compensar esta defasagem com a
força do apoio de sua base social, apoiado na movimentação autônoma da
classe na defesa de seus direitos e pelas demandas populares, ou seja,
no movimento social e sindical organizado e na capacidade de mobilização
da população, principalmente os trabalhadores.
A escolha da primeira neutralizou esta segunda alternativa impondo ao
movimento social e sindical um profundo apassivamento. Em nenhum
momento, diante de uma demanda popular que encontrasse resistência dos
setores conservadores, as massas foram chamadas a pressionar de fora,
pelo contrário foi de dentro dos setores petistas que emergiram as
iniciativas conservadoras que atacaram os direitos dos trabalhadores
(como a reforma da previdência, a implantação das parcerias público
privadas e outras).
Desta forma e diante da explosão da indignação popular, se apressa a
propor uma reforma política constrangida pelos limites dos interesses da
atual forma política consolidada o que gera uma contradição: como
aqueles que se beneficiam desta forma vão reformá-la? Qualquer forma que
incorpore a população e os trabalhadores diretamente atrapalha o jogo
dos interesses de classe que se expressam no aparentemente caótico
quadro partidário institucional.
Inicialmente se falou de plebiscito e uma constituinte exclusiva e
agora volta-se atrás para falar em consultas para um processo dirigido
pelo Congresso propor uma reforma política.
O terceiro pacto seria contra a corrupção. O instrumento, no entanto,
se reduz ao endurecimento das penas e não ataca as causas da corrupção.
O erro neste campo é considerar a questão pelo aspecto moral, como
desvio de conduta. A corrupção, direta ou disfarçada, encontra sua raiz
naquilo que Lênin, em seus estudos sobre o imperialismo, denominou de
união pessoal entre os monopólios e governos, ou seja, o fato de que as
mesmas pessoas que estão no comando de corporações monopolistas muitas
vezes são chamadas a compor os quadros do governo burguês ou sua
representação parlamentar. O problema da corrupção é o grau de poder e
influência dos monopólios sobre aqueles que definem as políticas
públicas visando dirigir a ação do governo para os interesses do lucro e
da acumulação de capital. Em poucas palavras, não se atacará os
corruptos sem identificar claramente os corruptores.
Quanto aos dois últimos pactos propostos – pela saúde e pela
mobilidade pública – a proposta só reforça a impressão inicial de que no
fundo se apresenta mais do mesmo: desoneração de tributos.
Para enfrentar os graves problemas de saúde e de transporte, já que
não se pretende mudar a forma atual das concessões e parcerias público
privadas, é tirar impostos. A questão é se esta desoneração implica em
melhoria dos serviços – e nós estamos convencidos que tal atitude se
dirige de fato para manter a lucratividade das empresas e não a
qualidade dos serviços. É de fato uma prática central deste governo que
brinda empresários com desonerações, como vimos com a redução de
impostos para carros e eletrodomésticos e os subsídios pesados ao
agronegócio. Não há uma linha na declaração e no pacto proposto que fale
sobre uma política de saúde que supere os gargalos e contradições hoje
existentes, que amplie significativamente os recursos e investimentos,
mas isso é compreensível pois se assim procedesse estaria o governo
rompendo o primeiro pacto proposto em defesa da estabilidade fiscal.
Não sabemos se as mobilizações conseguirão manter seu vigor, mas
diante dos pactos propostos deveriam, pois eles nem de perto respondem
às demandas colocadas pelas massas na rua. O verdadeiro caminho que se
abre, após a rejeição categórica da patética proposta do governo é dar
um salto de qualidade política às manifestações e chegarmos a um
verdadeiro programa popular que dê conta das demandas apresentadas e da
forma política de alcança-las
Estamos convencidos que este programa, se quiser dar respostas de
fato aos problemas apresentados, deve, por um lado exigir o caráter
público dos serviços que visam a atender direitos essenciais como saúde,
educação e transporte que nunca podem ser resolvidos pela forma
mercadoria. Mas se quisermos avançar devemos tocar na questão de fundo
que é a produção social da riqueza e de sua acumulação privada e que
papel real têm as empresas que supostamente produzem bens e serviços que
devemos comprar no mercado, ou seja, a vida e a reprodução podem ser
garantidos pelo mercador e os monopólios capitalistas?
Uma verdadeira assembleia popular constituinte, eleita entre os
trabalhadores e a população em seus locais de moradia e trabalho que
chegue a um programa popular se chocará com a ordem capitalista e, cedo
ou tarde, chegará à constatação de que as demandas populares jamais
serão atendidas verdadeiramente no quadro de uma aliança de classes com
aqueles que acumulam a riqueza privadamente e marcharemos para a forma
política de um governo e um poder popular, fora e contra a ordem
burguesa institucional constituída.
Referencias
IASI, Mauro L. Metamorfoses da consciência de classe: o PT entre a
negação e o consentimento. São Paulo: Expressão Popular, 2004.
LIMONGE, F. E FIGUEIREDO, A. As bases do presidencialismo de coalisão. Revista Lua Nova, n. 44, 1995/1996, pp. 97-105.
* MAURO IASI é Professor Adjunto da ESS da UFRJ, pesquisador do NEPEM
(Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio. Membro do
CC do PCB.
Não ao pacto: avançar para um programa anticapitalista e o poder popular
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Oleh
Kaizim