Chico Alencar
“Somos o que fazemos. Mas somos, principalmente, o que fazemos para mudar o que somos.”
(Eduardo Galeano)
O Globo, publicado em 10 de março de 2012
“Brasileiro não tem memória”, diz o
senso comum. Entretanto, um povo só avança em civilização conhecendo sua
própria história. Esquecer períodos é postura obscurantista e perigosa:
quem não se recorda do passado corre o risco de revivê-lo.
Os crimes de perseguição, tortura,
assassinato e desaparecimento de presos políticos, cometidos pela
ditadura civil-militar implantada com o golpe de 1964, foram hediondos.
Ninguém pode ser conivente com eles. Quando se alega que também houve
prática “terrorista” por parte daqueles que se insurgiram contra a
ditadura, igualando-os aos torturadores, omite-se importante aspecto:
enquanto o governo militar agia, sem legitimidade para tanto, sobre
pessoas imobilizadas, os que ousavam resistir ao regime pagaram seus
atos com prisão, sevícias cruéis, exílio ou morte. Já foram
violentamente punidos, sem limites. Seus algozes, por outro lado, até
ascenderam na hierarquia do serviço público ou no mundo empresarial!
Não há revanchismo: ninguém quer
torturar torturadores, realizar prisões ilegais e negar direito de
defesa, mas fazer valer o direito à memória e à justiça. Passado é o que
passou e o que, sendo devidamente lido e relido, nos constitui. A
máquina de terror montada pela ditadura não pode ser “página infeliz”
virada, arrancada ou lida às pressas. Nem “passagem desbotada na memória
das nossas novas gerações”, como alerta a denúncia poética de Chico
Buarque e Francis Hime.
A sociedade tem o direito irrenunciável
de conhecer quem ordenou a tortura e torturou, quem montou a estratégia,
quem a financiou, quem praticou atos tão covardes que nem mesmo o
regime, embora os tenha organizado “cientificamente” e exportado know
how para ditaduras vizinhas, os assumiu.
A consciência democrática não
compreenderia a adesão da oficialidade contemporânea a processos
espúrios, que só desonraram seus estamentos. Que corporativismo seria
aquele que defendesse como seu “patrimônio” práticas que atentaram
contra os mais elementares direitos das pessoas? Ou que corroborasse,
passadas três décadas, escandalosas mentiras?
O princípio humanista garante que as
famílias que não tiveram sequer o direito de sepultar seus entes
queridos, ou que viveram o drama indizível de sabê-los nas masmorras,
sofrendo todo tipo de agressão, conheçam seus carrascos. Para usar, se
desejarem, o direito de acioná-los judicialmente. Os protagonistas da
repressão encapuzada devem ter a hombridade de reconhecer que praticaram
atrocidades, caminhando assim para o que em direito se chama de
“arrependimento eficaz”, como ocorreu na África do Sul.
A Comissão Parlamentar da Verdade, que
já tarda, e suas similares nos Legislativos, devem atuar dentro deste
viés humanista: com firmeza, serenidade e visão de processo histórico.
CHICO ALENCAR é deputado federal (PSOL-RJ).
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