24 de julho de 2013

A cidade do Rio de Janeiro sob o terror do Estado

A cidade do Rio de Janeiro sob o terror do Estado

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Pelo Secretariado Regional

19/ 07/ 2013

Nos últimos dias a cidade do Rio de Janeiro assistiu a demonstrações claras de práticas fascistas, vindas diretamente do governo Cabral e de sua Polícia Militar. Em ambos os casos, predominou a hipocrisia, misturada a ameaças, essas últimas feitas diretamente pelo comandante da PM.

Na Rocinha, desde sábado, está desaparecido um trabalhador, Amarildo, de 49 anos, cuja prisão fora efetuada momentos antes pela corporação que, teoricamente, deveria protegê-lo: a toda propagandeada PM da UPP. A população daquela comunidade protestou de forma pacífica, pedindo que seja dada uma resposta sobre o paradeiro de Amarildo. A resposta da polícia se repete nesse como em todos os casos onde estão envolvidos trabalhadores vítimas da violência policial: havia suspeita de que o Amarildo estivesse envolvido com o tráfico de drogas, vai daí...

Na 4ª Feira (17), manifestantes, pacificamente, protestaram, mais uma vez, na porta da casa do governador, exigindo que ele pare com os desmandos em sua administração, gastando dinheiro público para utilizar helicópteros do Estado em deslocamentos dele e de seus familiares, inclusive do cãozinho de estimação, e deixando à míngua os hospitais públicos, os colégios estaduais, e entregue o transporte público às gangues das barcas, dos trens e do metrô.

A manifestação terminou de forma violenta, com repressão policial e onda de saques no comércio da região.
Enquanto os manifestantes eram presos e detidos, os "vândalos" agiam à vontade. Claramente, a PM, sob comando do governador e do Cel. Erir, se omite propositalmente para justificar futuras truculências, a pretexto de estar protegendo a propriedade privada.

Denunciamos, assim, um esquema fascista em nosso Estado, e em particular na cidade do Rio de Janeiro, no sentido de criminalizar o fato político de se denunciar as falcatruas do governador. Cabral faz parte do aprofundamento do sistema capitalista em nosso país, iniciado pelo governo FHC, e levado às últimas consequências pelos governos petistas de Lula e Dilma.

A questão da repressão aos manifestantes é mais grave do que simplórios discursos que colocam frente à frente manifestação pacífica versus "baderneiros". A baderna está sendo estimulada pelo Estado, para que depois venha o discurso do “choque de ordem”, tão a gosto do capitalismo, quando não consegue mais resolver suas contradições.

Por isso, nós, do PCB, denunciamos a entrevista coletiva do governador e de sua equipe de segurança como uma tentativa de intimidar aqueles que pretendem expulsá-lo, politicamente, da vida do Estado do Rio de Janeiro.

Nós, os comunistas, continuaremos nas ruas, enfrentando a violência de uma PM totalmente despreparada para o jogo político democrático, enfrentando a aliança PMDB/ PT que representa o capitalismo em seu estado mais bruto, a barbárie.

http://pcb-rj.blogspot.com.br/2013/07/a-cidade-do-rio-de-janeiro-sob-o-terror.html
O ESTADO SIONISTA MANTÉM 2.000 REFUGIADOS AFRICANOS EM CADEIA NO DESERTO

O ESTADO SIONISTA MANTÉM 2.000 REFUGIADOS AFRICANOS EM CADEIA NO DESERTO

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Na prisão de Saharonim, que fica no deserto do Negev, no sul de Israel, se encontram homens, mulheres e crianças do Sudão e da Eritreia, que tentaram entrar no país a pé, através da península egípcia do Sinai.

Desde que Israel concluiu a construção da cerca que separa o Sinai do sul do país, em 2012, houve uma queda de mais de 99% no número de refugiados africanos que conseguem entrar no território israelense.

Os poucos que conseguem ultrapassar a cerca (desde o inicio de 2013 foram apenas 34) são imediatamente levados para a prisão de Saharonim.

No entanto, de 2007 a 2012, cerca de 60.000 cidadãos da Eritreia e do Sudão, que fugiram de seus países para salvar suas vidas, conseguiram entrar em Israel.

Essas pessoas vivem no país sem qualquer reconhecimento de sua condição de refugiados e sem que o Estado avalie as circunstâncias nas quais deixaram seus países e entraram em Israel. "Se entrevistassem essas pessoas, se as ouvissem, descobririam que a grande maioria delas é de refugiados políticos e que merecem receber o status e os direitos de refugiados", afirmou Sigal Rozen, da ONG israelense Hotline for Migrant Workers (centro de assistência a trabalhadores estrangeiros, em tradução livre).

"Se verificassem a situação delas, as autoridades seriam obrigadas, pela lei internacional, a conceder o status de refugiado a dezenas de milhares de pessoas, então preferem nem avaliar", acrescentou a Opera Mundi.
A lei internacional proíbe que um país repatrie pessoas cujas vidas podem estar ameaçadas em seu país de origem. Esse é o caso do Sudão, assolado por uma sangrenta guerra civil e da Eritreia, controlada por uma das ditaduras militares mais cruéis do planeta.

Ódio racial

Sem documentos e sem direito de trabalhar legalmente, a população de refugiados africanos vive em condições precárias e se concentra principalmente na região sul da cidade de Tel Aviv.

Essa área da cidade, que é a mais pobre da grande metrópole israelense, virou cenário de ódio racial por parte dos habitantes locais contra os refugiados africanos.

Esse ódio, parte em consequência do incitamento conduzido por políticos de direita contra os refugiados africanos, e parte em decorrência das condições de vida nos bairros pobres e densos da cidade, vem se alastrando e, nos últimos dois anos, já causou algumas erupções violentas.

Em 2012, houve uma série de ataques por parte de israelenses racistas contra casas e pequenos negócios de africanos, deixando vários lugares depredados e pessoas feridas.

Entre os políticos de direita que incitam contra os africanos está a deputada Miri Regev, do partido governista Likud e chefe da Comissão de Interior do Parlamento. Regev chegou a qualificar os refugiados africanos como "câncer no corpo da nação".

"Politica de avestruz"

ONGs de direitos humanos acusam o governo israelense de conduzir uma "politica de avestruz" na questão dos refugiados africanos. "Em vez de enfrentar o problema e tentar resolvê-lo, simplesmente deixam os refugiados jogados nas áreas mais pobres de Tel Aviv, sem assistência médica ou social", disse Rozen.

O governo israelense qualifica os refugiados africanos como "infiltrados", ou seja, pessoas que "se infiltram" pela fronteira, supostamente para procurar trabalho no país, e não os reconhece como refugiados.

O ministro do Interior, Gideon Saar, afirmou que "precisamos continuar agindo energicamente para barrar esse fenômeno, continuaremos com a política do governo de repatriar infiltradores para seus países de origem ou para terceiros países".

Nos últimos meses, porta-vozes oficiais vêm afirmando que o governo está conduzindo negociações com países africanos para que recebam os cidadãos eritreus e sudaneses que se encontram em Israel. Porém ainda não se sabe se algum país se dispôs a recebê-los.

De acordo com o ministro, Israel "é o único país ocidental que tem fronteira com a África e, se não agirmos de maneira clara e sem concessões, o país será inundado por infiltradores ilegais".

Endurecimento das leis

Segundo a Lei de Prevenção de Infiltração, aprovada pelo Parlamento de Israel em junho de 2012, qualquer refugiado africano que tente entrar sem documentos no país pode ser preso por um período de pelo menos três anos.

Nos últimos meses, o Parlamento também aprovou uma nova cláusula à mesma lei, que permite que qualquer imigrante sem papeis que for suspeito de contravenções seja imediatamente enviado à prisão de Saharonim.

"De acordo com a nova cláusula, se um imigrante eritreu é suspeito de roubar uma bicicleta, pode ser enviado a Saharonim por tempo indeterminado, nem é necessário um julgamento, basta a suspeita", afirmou Sigal Rozen.

Rozen conseguiu entrar na prisão de Saharonim juntamente com alguns advogados da ONG e pôde ver de perto as condições no local.

Segundo o relato da organização, trata-se de um complexo que inclui construções e barracas. "As mulheres e crianças ficam nas construções, a maioria dos homens fica nas barracas", disse Rozen, que acrescentou que a temperatura no deserto do Negev pode chegar a mais de 40 graus.

O governo israelense continua endurecendo as condições dos refugiados para "desestimular" esse tipo de migração. Em junho deste ano, o Parlamento aprovou mais uma lei proposta pelo governo, proibindo que os "infiltradores" enviem dinheiro para o exterior até deixarem o país.

Segundo um comunicado do governo, o objetivo da nova lei é "reduzir o número de infiltradores".

Sequestro e estupro no caminho

A reportagem de Opera Mundi também conversou com Shahar Shoham, responsável pelo departamento de refugiados na ONG Médicos pelos Direitos Humanos/ Israel.

A ONG entrou com um recurso junto à Suprema Corte de Justiça exigindo que haja atendimento ginecológico para as mulheres africanas presas em Saharonim.

"Muitas dessas mulheres passaram por experiências terríveis no caminho para cá", disse Shoham, "houve muitos casos de sequestro e estupro, por gangues de beduínos no Sinai, e na prisão não há médicos ginecologistas".

O recurso foi apresentado à Corte há dois anos, porém até agora ainda não há ginecologistas em Saharonim. "Nossa ONG e todas as outras organizações que trabalham pelos direitos dos refugiados africanos, exigimos que seja feita uma avaliação transparente e justa da situação dessas pessoas, e que aqueles que merecem recebam o status e todos os direitos de refugiados", afirmou.

Para a ativista, Israel deve conceder aos refugiados do Sudão e da Eritreia o direito de "residência social". "Enquanto essas pessoas se encontram aqui, elas devem receber assistência médica e social, além do direito de trabalhar legalmente para que possam se sustentar", disse.

"Não há razão alguma para que os refugiados sejam mantidos na prisão, eles não cometeram crime algum, apenas fugiram de seus países para se salvar".

POSTADO: 
Carta ao Presidente do Equador, Rafael Correa

Carta ao Presidente do Equador, Rafael Correa

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Edward Joseph Snowden

“Existem poucos líderes mundiais que arriscariam colocar-se do lado dos direitos humanos de um individuo face ao governo mais poderoso do planeta, e a valentia de Equador e do seu povo constitui um exemplo para o mundo.

Devo exprimir o meu profundo respeito pelos seus princípios e o meu sincero agradecimento pela acção do seu governo ao tomar em consideração o meu pedido de asilo político.

O Governo dos Estados Unidos da América montou o maior sistema de vigilância do mundo. Este sistema global afecta toda a vida humana vinculada à tecnologia: gravando, analisando e submetendo a juízo secreto cada membro do público internacional. Existe uma grave violação dos nossos direitos humanos universais quando um sistema político perpetua a espionagem automática, generalizada e sem garantias contra pessoas inocentes.

De acordo com esta convicção, revelei este programa ao meu país e ao mundo. Enquanto o público exprimiu apoio ao esclarecimento que abri sobre este sistema secreto de injustiça, o Governo dos Estados Unidos de América respondeu com uma perseguição extrajudicial que me custou a minha família, a minha liberdade de movimentos e o meu direito a uma vida pacífica, sem o receio de uma agressão ilegal.

Enquanto eu enfrento esta perseguição, aqueles governos temerosos do Governo norte-americano e das suas ameaças mantêm-se em silêncio.

cção do seu Cônsul em Londres, Fidel Narváez, garantiu que os meus direitos fossem protegidos durante a minha saída de Hong Kong. Sem isso nunca poderia ter-me arriscado a viajar.

Agora, como resultado, mantenho-me livre e em condições de publicar informação que serve o interesse do público.

Sem me preocupar com os dias que me restem de vida, manterei a minha dedicação à luta pela justiça num mundo desigual. Se algum desses dias contribuir para o bem comum, o mundo deverá agradecê-lo aos princípios do Equador.

Aceite, por favor, a minha gratidão em relação a si, como representante do seu Governo e do povo da República do Equador, bem como a minha grande admiração pessoal pelo seu compromisso em fazer o que é correcto, em vez daquilo que possa trazer recompensas”.

Edward Joseph Snowden.

http://www.odiario.info/?p=2944

O golpe de Estado no Egito: Islamismo, democracia, revolução

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Santiago Alba Rico

Podemos falar de “revolução” nos seguintes casos:

Quando uma maioria social, com interesses diversos ou não, e mesmo que não tenha programa político, derruba uma ditadura.

Quando um programa político de transformações radicais, pelas armas ou não, e com o apoio de uma maioria social, impõe-se sobre uma “democracia burguesa”.

No Egito, houve revolução, no primeiro desses sentidos, em 2011. E até agora não houve revolução alguma, no segundo desses sentidos. E a derrubada, agora, de Mursi, não se encaixa – é evidente – em nenhuma das duas definições acima.

Não havia ditadura a derrubar no Egito (só uma limitada “democracia burguesa”), e não há qualquer programa político de transformações radicais em jogo, pelo menos que a maioria da praça aprove.

Quando uma “democracia burguesa” é derrotada por exército fascista, o resultado chama-se – tecnicamente e politicamente – “golpe de Estado”. Se milhões de pessoas, inclusive muitas das quais revolucionárias no primeiro sentido acima, pedem golpe de Estado, nem por isso o golpe deixa de ser golpe.

Se milhares de pessoas na praça não querem a intervenção do Exército – porque são revolucionárias também no segundo sentido do termo “revolução”, acima –, o golpe de Estado anula completamente a vontade delas.

Exército fascista que destitui e sequestra presidente eleito; que suspende a Constituição; que dissolve o Parlamento; que mete na prisão os dirigentes do partido majoritário; que fecha suas televisões e seus jornais; que atira contra membros e militantes do partido majoritário está dando um golpe de Estado. Se é apoiado por muita gente, o golpe é mais fácil. Se, além do mais, a esquerda também apóia o golpe e põe-se a chamá-lo de “revolução”, então, o golpe é facílimo.

No mundo árabe não havia nem há condições para que se produza revolução no segundo sentido aqui comentado. Por que era importante – crucialmente importante – que se produzissem revoluções no primeiro dos dois sentidos? Por dois motivos.

Primeiro, porque o estabelecimento de uma “democracia burguesa” sob impulso dos povos permitia a formação de um novo sujeito político e a construção, nas novas condições democráticas, de alternativas coletivas até agora inexistentes e inimagináveis.

Segundo, porque uma “democracia burguesa” traria à luz a verdadeira relação de forças na região, favoráveis aos islamistas. Era um perigo, sim, mas também uma necessidade inescapável, por todas essas ditaduras haviam justificado seu poder – e a repressão de todas as expressões políticas, incluída a esquerda – contra o “terrorismo islâmico”, que elas mesmas alimentavam, num enlace felizmente eterno para os caudilhos, mediante a repressão e a tirania.

A normalização política abria a esperança de uma “democratização do islamismo” através do exercício do governo, como aconteceu em parte em Túnis e também no Egito antes da derrubada de Mursi. A busca do confronto a qualquer preço, e a estratégia de perseguição e derrubada por qualquer meio, só pode abortar, por assim dizer, “o amadurecimento do fracasso” do projeto islamista, que é inevitável, mas que se deve produzir num marco democrático, se não quisermos voltar ao trágico “dia da marmota” que há décadas cobre a região de sangue e subjuga seus povos.

A esquerda, desgraçadamente, se prestou a esse jogo no qual só o “ancien regime” pode vencer.

Mas há outro motivo pelo qual a esquerda deveria compreender a necessidade de respeitar as regras do jogo que ela própria contribuiu para estabelecer, com as revoluções democráticas.

No mundo árabe – e na Tunísia e no Egito, de modo bem claro – há dois marcos hegemônicos paralelos: um, das classes populares, modelado pelo Islã político; e outro, das classes médias e altas, modelado pela direita laica.

Durante as ditaduras, a esquerda, reprimida, isolada, presa entre os dois marcos, declarou-se vencida no território das classes populares, que lhe era natural; e acabou assimilada à direita laica, nem tanto porque tenha pactuado com ela – o que várias vezes fez –, mas, mais, porque acabou distanciada da rua e embalsamada no âmbar de um elitismo – se não de classe – cultural e intelectual.

Um amigo que há anos deixou o partido Nahda, profundamente enojado, para tratar de elaborar um projeto de “islamismo da libertação”, segundo o modelo da “teologia da libertação”, sempre reprova à Frente Popular da Tunísia o seu distanciamento elitista da cultura popular; e, evocando Chávez expressamente, afirma que a Tunísia só será comunista quando, em vez de empenhar em esvaziá-las, os comunistas se puserem a pregar comunismo nas mesquitas.

Isso se aplica a toda a região e, claro, também e sobretudo ao Egito.

Construir um novo marco hegemônico de esquerda no mundo árabe pressupõe a normalização política do islamismo, seu desgaste controlado e sua radicalização – na direção da esquerda – a partir do interior da cultura popular.

Golpe de Estado baseado unicamente no anti-islamismo (que conte, portanto, com as forças muito mais poderosas e provadamente nefastas da direita laica) não apenas não é revolução no segundo sentido evocado acima: o golpe também aborta a revolução no primeiro sentido acima, condição de qualquer mudança profunda que se queira fazer no futuro. Foi o que se passou na Argélia em 1992, com resultado que todos conhecemos bem. Agora, pode ser muito pior.

Todos citamos frequentemente a famosa frase de Marx: a história repete-se duas vezes, a primeira como tragédia e a segunda como farsa. Não. A história repete-se muitas vezes: a primeira como tragédia, a segunda como catástrofe, a terceira como inferno, a quarta como apocalipse. Não vejo o que a esquerda poderia ganhar com essa sequência mortal...


Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
PCB - Origem e declínio do capitalismo

PCB - Origem e declínio do capitalismo

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Origem e declínio do capitalismo

por Jorge Beinstein*

Retorno à origem 

Em certos rituais funerários de tempos remotos os mortos eram colocados em posição fetal. Encontraram-se por exemplo restos de homens do neandertal sepultados dessa maneira com a cabeça a apontar para o Oeste e os pés para o Leste. Algumas hipóteses antropológicas sustentam que essa disposição do cadáver se relacionava com a crença no renascimento do morto. A civilização burguesa à medida que avança a sua senilidade parece reiterar esses ritos. Preparando-se para o desenlace final aponta a cabeça para a sua origem ocidental e vai acomodando o corpo degradado procurando recuperar as formas pré-natais, tentando talvez assim conseguir uma vitalidade irremediavelmente perdida.

O fim e a origem aparentam convergir, mas o ancião não consegue voltar ao passado e sim, antes, reproduzi-lo de maneira grotesca e decadente. Rumo ao final do seu percurso histórico o capitalismo volta-se prioritariamente para as finanças, o comércio e o militarismo no seu nível mais aventureiro "copiando" seu início quando o Ocidente conseguiu saquear recursos naturais,sobre-explorar populações e realizar genocídios acumulando desse modo riquezas desmesuradas em relação ao seu tamanho. Isso lhe permitiu expandir seus mercados internos, investir em novas formas produtivas, desenvolver instituições, capacidade científica e técnica. Em suma, construir a "civilização" que levou Voltaire a dizer:   "a civilização não suprime a barbárie, aperfeiçoa-a". 

A decadência do mundo burguês de certo modo imita a sua origem, mas não o faz a partir de um protagonista jovem e sim decrépito e num contexto completamente diferente:   o da gestação era um planeta rico em recursos humanos e naturais disponíveis, virgem do ponto de vista dos apetites capitalistas. O actual é um contexto saturado de capitalismo, com fortes espaços resistentes ou pouco manejáveis na periferia, com numerosos recursos naturais decisivos em rápido esgotamento e um meio ambiente global desarranjado.

Fim de ciclo. Decadência:   do capitalismo industrial ao parasitismo. 

Toda a história do capitalismo é atravessada por numerosas crises de curta, média e longa duração, de gestação, de nascimento, de crescimento, de maturidade, de decadência, sectorial, pluri-sectorial, geral, etc. A actual conjuntura global costuma ser descrita empregando o termo crise (do neoliberalismo, financeira, sistémica, do capitalismo, de civilização...). Trata-se realmente de uma crise ou de algo mais? Encontramo-nos perante uma turbulência devastadora ou não tão truculenta mas anunciadora de uma nova ordem mundial capitalista, ou seja, de uma regeneração sistémica ou antes do canto do cisne de uma civilização caduca? No primeiro caso cabia falar de crise de reconversão, de destruição criadora no sentido shumpeteriano, no segundo poderia em princípio ser definida com uma só palavra:   decadência.

Os conceitos de crise decadência são ambíguos, o seu uso não resolve completamente as interrogações que coloca a descrição da realidade actual. Em geral falamos de crise quando enfrentamos uma turbulência ou perturbação importante do sistema social. O conceito de decadênciacostuma ser associado à ideia de irreversibilidade, de trajectória iniludível, de caminho mais ou menos lento, acidentado ou calmo, rumo à extinção, rumo ao final. Contudo, a história mostra tanto longos processos de declínio que culminam com o fim de uma sociedade ou civilização como fenómenos vistos como decadências mas que em algum momento se convertem em renascimento, no início de uma segunda juventude. Sobretudo durante certos períodos de transição cultural onde se combina o velho dominante mas ainda hegemónico com o novo ascendente ainda que suportando derrotas, fracassos próprios das experiências demasiado jovens, demasiado dependentes do "senso comum" estabelecido pelas antigas verdades capazes de sobreviver durante muito tempo ao seu crescente divórcio com a realidade.

Muitas vezes uma crise prolongada atravessada por turbulências que se vão sucedendo umas após as outras formando uma continuidade de calamidades surge como um mundo que se arruína quando pode chegar a ser a oficina de forja de uma nova era. A chamada "longa crise do século XVII" que afectou a Europa e que se foi convertendo gradualmente na base de lançamento planetário da modernidade ocidental foi vista por boa parte dos seus contemporâneos mais lúcidos como uma época de desastres e decadência universal.
Essa visão prolongou-se até estar bem avançado o século XVIII, quando a emergência do iluminismo, da ideologia do progresso, do culto àRazão, combinaram-se nas elites do Ocidente com o fantasma da decadência, simbolizado pelo declínio do império romano. Em 1734 Montesquieu publicava suas "Considerações acerca das causas da grandeza e decadência dos romanos" e curiosamente, em 1776 na Inglaterra, onde começava a Revolução Industrial enquanto Adam Smith publicava a primeira edição de "A riqueza das nações" estabelecendo as bases teóricas do capitalismo liberal nascente, marcando o avanço optimista do racionalismo burguês, Edward Gibbon publicava a primeira edição da sua"História da decadência e queda do Império romano" dilatando o espaço das visões pessimistas das elites tradicionais da Europa angustiadas pelo declínio do universo cultural e institucional das aristocracias.
Não é excessivo recordar aquilo que poderíamos qualificar como obsessão e nostalgia plurisecular recorrente da cultura ocidental quanto à grandeza da Roma imperial, da sua duradoura "pax romana" ou dominação "universal" (do "universo" colonial possível nessa época com centro no Mar Mediterrâneo). Desde a tentativa de restauração do império vários séculos depois do seu derrube com a proclamação em Roma de Carlos Magno no ano 800 (e em consequência do extinto Império Romano do Ocidente ), seguindo com o Sacro Império Romano Germânico (o "Primeiro Reich") no século posterior, chegando aos delírios imperiais-romanos do imperador Napoleão, continuando com o Kaiserreich ("Kaiser" derivado do César romano) ou "Segundo Reich" da Alemanha a partir de 1871 radicalizado a seguir por Hitler como "Terceiro Reich", a Itália fascista proclamada por Mussolini como Terceira Roma (a "Terza Roma" herdeira da Roma Imperial e da Roma papal ) e naturalmente falangistas, nazi e fascistas a saudarem com o braço ao alto, a saudação romano imperial, para chegar finalmente (por agora) às elucubrações durante a década passada acerca da Pax Americana imaginada pelos falcões de George W. Bush como uma espécie de reedição em escala planetária do Império Romano tal como propuseram na altura textos influentes no primeiro círculo do poder dos Estados Unidos autores como Robert Kaplan [1] .

Mas a nostalgia imperialista não pode prescindir do temor oculto que esconde por baixo da euforia, porque o esplendor escravocrata anunciava a sua decadência, seus luxos parasitários que resultavam da incessante expansão do sistema converteram-se no veneno mortal, a droga alentou a sua ruína. Como assinalava Juvenal:   "O luxo, mais insidioso que o inimigo estrangeiro, apoia-nos sua mão pesada, vingando o mundo que conquistámos" [2] . A extravagante literatura que proliferou nos princípios do século XXI alentada pelo triunfalismo dos falcões do Império desenvolvendo paralelos entre Roma (dos césares) e Washington (de Bush) fê-lo em paralelo com a aparição de numerosos textos relativos à decadência romana – muitos deles a estabelecerem semelhanças com as potências ocidentais, principalmente os Estados Unidos.

A longo crise do século XVII foi uma enorme trituradora histórica de velhas estruturas e mentalidades, gerando o declive das monarquias absolutistas do Ocidente e mais adiante favorecendo a ascensão do capitalismo industrial a partir de uma crise de nascimento, do parto turbulento, dramático, do mundo moderno, entre fins do século XVIII e princípios do XIX, marcado pela revolução industrial na Inglaterra, pela Revolução Francesa, pelas guerras napoleónicas, pela Restauração, etc.

Muito tempo depois a Europa viveu uma crise relativamente longa entre 1914 e 1945. Foi pensada pelos bolcheviques como o declínio universal do capitalismo que abrir as portas à sua superação revolucionária, socialista-comunista. Na realidade, tratou-se de um processo complexo que combinava elementos incipientes de decadência, significativos mas insuficientes para forma constituir uma avalancha global imparável, com outros de recomposição, de rejuvenescimento como a intervenção estatal na economia, a massa de invenções, de ideias técnicas que se foram transformando em inovações abrindo um novo horizonte social e sobretudo a presença dos aparelhos militares em expansão conjugando potência e acção destrutiva com multiplicadores do consumo, o investimento e a renovação tecnológica da produção civil (keynesianismo militar).

Os comunistas dos anos 1920 subestimavam a capacidade de recomposição do mundo burguês mas a extrema-direita, os fascistas dessa época, super-estimavam-na pois atribuíam-lhe uma esperança de vida demasiado prolongada. É assim que Mussolini proclamava triunfalista num artigo de Janeiro de 1921:   "o capitalismo está agora apenas no início da sua história", capítulo no qual o novo autoritarismo fascista projectava cumprir um papel decisivo, refundador, recuperando as raízes mais brutais do sistema. O Duce assim o sintetizava perante a Câmara de Deputado italiana alguns meses depois:   "a verdadeira história do capitalismo começa agora... há que abolir o Estado colectivista, tal como a guerra nos transmitiu pela necessidade das circunstâncias e voltar ao estado manchesteriano" [3] . Disciplinamento ditatorial da força de trabalho e liberdade total para os capitalistas.

Contudo, o sistema não podia regressar ao século XIX. Seus bloqueios estruturais obrigavam-no a utilizar a intervenção estatal na economia para desenvolver novos espaços de rentabilização como a indústria de guerra e as grandes obras públicas. O que se começava a instalar não era o velho capitalismo liberal do século XIX e sim a sua tábua de salvação militarista, intervencionista, que na sua primeira etapa europeia durante os anos 1920-1930 assumiu a forma de mutação ideológica do liberalismo para o totalitarismo fascista sob o guarda-chuva legitimador da "comunidade nacional" esmagando os "interesses sectoriais" dos de baixo. Como assinalava Horkheimer, "a ideia de comunidade nacional (a "Volksgemeinschaft" dos nazis), erguida como objecto de idolatria não podia em última análise ser sustentada senão por meio do terror. Isto explica a tendência do liberalismo a derivar rumo ao fascismo" [4] .

A recomposição estatista (keynesiana) do capitalismo central, emergida da Segunda Guerra Mundial, teve uma era dourada de apenas um quarto de século (aproximadamente 1945-1970). A seguir iniciou-se uma sucessão de turbulências que duram até o presente.

Mais adiante, a partir dos anos 1980, surgiu o que os meios de comunicação anunciavam como recomposição neoliberal do sistema. Contudo, os dados frios demonstram que para além do barulho mediático optimista se verificava uma deterioração sistémica que se aprofundava com o decorrer dos anos. As taxas de crescimento produtivo global, principalmente nos países centrais, foram-se reduzindo em termos de tendência a longo prazo, a economia mundial foi-se financiarizando até que em finais da primeira década do século XXI a massa financeira global equivalia a vinte vezes do Produto Bruto Mundial. Os estados, as empresas e os consumidores dos países ricos endividavam-se vertiginosamente até ficarem esmagados pelas dívidas.

Esta longa degradação tem todas as características de uma decadência – lenta se a medirmos segundo os ritmos do século XX. Trata-se de uma trajectória de aproximadamente quatro décadas cujo arranque pode ser situado no período 1968-1973/74. A partir daí a expansão do capitalismo global combina-se com a deterioração das suas componentes fundamentais que vão sendo encobertas pelo parasitismo financeiro e consumista, por uma militarização desestruturante e onde a dinâmica tecnológica está no centro de uma depredação sem precedentes dos recursos naturais. O percurso não atinge um ponto de regeneração e sim, muito pelo contrário, por volta dos anos 2007-2008-2009 produz-se um verdadeiro salto qualitativo e a decadência radicaliza-se convertendo-se num fenómeno de auto-destruição.

Decadência geral do sistema e não crise longa nem de crescimento como ocorreu na Europa no século XVII e entre fins do século XVIII e princípios do XIX. Tão pouco aparecem, como no período 1914-1945, manifestações de declínio mescladas com outras de recomposição marcadas pelo declínio da Europa centro-ocidental e a ascensão dos Estados Unidos.

Em relação a este último é necessário assinalar que do ponto de vista da dinâmica do capitalismo mundial a China dos princípios do século XXI não é o equivalente dos Estados Unidos da primeira metade do século XX. A economia chinesa é periférica em relação às potências centrais, seu desenvolvimento depende da sua estrutura industrial-exportadora atada aos seus principais clientes:   os Estados Unidos, a União Europeia e o Japão, compradores do grosso das suas exportações que constituem aproximadamente a metade da sua produção industrial e em consequência cerca de 25% do seu Produto Interno Bruto.

Ela o faz a partir da sua mão-de-obra barata, o que permite a essas potências sobre-explorar de maneira directa e indirecta uns 230 milhões de operários industriais e um leque ainda mais vasto de trabalhadores chineses. Acumula mais de 3,5 milhões de milhões de dólares de reservas, montanhas de papeis de valor futuro incerto, o endividamento estatal e empresarial cresce vertiginosamente e sua economia está plenamente integrada no emaranhado financeiro global que provoca impacto no seu interior, gerando bolhas especulativas, distorções inflacionárias, corrupção institucional [5] .

O seu desinchar actual, em acordo com o estancamento dos centros imperiais, é inevitável e as tentativas das autoridades para suavizá-lo, contê-lo dentro de limites manejáveis, chocam-se cada vez mais com uma configuração social elitista que bloqueia a expansão do mercado interno. A isto acrescenta-se a rigidez de estruturas transnacionais transnacionalizadas, incorporadas a redes comerciais e financeiras globais, tecnologicamente modeladas pela procura dos países ricos cuja reconversão à procura local constitui uma espécie de quadratura do círculo.

Enquanto isso a China saiu da existência marginal e miserável a que a havia condenado a decadência do velho império e a colonização ocidental e hoje dispõe de um potencial industrial, científico-tecnológico, militar, etc (produto dos processos de desenvolvimento iniciados há pouco mais de seis décadas) que a converte num protagonista decisivo das futuras turbulências internacionais.

A visão de uma China " mais desenvolvida" pode ser estendida ao conjunto da periferia, em especial seus grandes países como a Índia, Brasil ou Rússia e a outros de menor porte como a África do Sul, Argentina ou Venezuela, o que conduz inevitavelmente em direcção ao campo das ilusões em torno da renovação do capitalismo global a partir da periferia, do seu arranque positivo em relação à decadência ocidental (e japonesa). Mas os dados sobre a China, Índia, Brasil, Rússia, etc, mostram a integração dessas economias à rede financeira global centrada nos espaços especulativos do Ocidente. E apesar de ser certo que as economias periféricas emergentes continuam a crescer, não é menos certo que o seu crescimento se vai desinchando. Isso acontece com uma defasagem temporal que se vem sustentando durante o último lustro, mas que poderia ser corrigida proximamente de maneira abrupta.

Ainda que este esclarecimento deva ser associado ao facto de que se verificou uma mudança significativa na geografia económica mundial, sobretudo ao longo da última década. Portanto, agora uma parte significativa da periferia apresenta níveis relativos de desenvolvimento industrial, militar, urbano, etc que a tornam menos submissa à hierarquia global tradicional do capitalismo, mais independente do ponto de vista político. Medida em "paridade de poder de compra", a soma dos PIB de três países periféricos – Brasil, Índia e China – hoje é equivalente à das grandes economias ocidentais (Inglaterra, França, Canadá, Itália, Alemanha e Estados Unidos) e o comércio entre os países do Sul é quase igual ao que existe entre os países do Norte.

O futuro agravamento da deterioração do capitalismo global abre portanto importantes espaços de autonomia na periferia, que agora conta com bases produtivas e culturais que lhe poderiam permitir atravessar com maior facilidade as barreiras burguesas e defender-se de eventuais agressões externas. Pensemos por exemplo na onda de movimentos sociais e nos crescimentos produtivos da América Latina na última década, na China passando de 50 milhões para 230 milhões de operários industriais num quarto de século, numa periferia onde as comunicações expandiram-se exponencialmente:   a massificação da Internet em princípios da década passada era uma marca característica dos países centrais, mas actualmente na periferia os utilizadores de Internet superam as 1500 milhões de pessoas contra pouco mais de 600 milhões nos países centrais.

Isto nos leva ao primeiro indicador da decadência global:   o declínio sem substituição à vista do centro dominante (ocidental) do sistema. A integração (política, militar, financeira, etc) das grandes potências capitalistas em torno dos Estados Unidos moldou uma espécie de imperialismo colectivo que só um grau muito avançado da decadência poderia chegar a desfazer. Por outro lado, nenhuma das economias importantes da periferia está em condições de ser converter em super-potência imperialista planetária. Fica colocada a possibilidade teórica de um capitalismo mundial sem centro imperialista, ou seja, sem um amo capaz de impor regras de jogo ao conjunto do sistema diante do qual estas regras seriam o resultado de uma espécie de idílica harmonia universal. Desse modo, uma formação social essencialmente autoritária conseguiria funcionar de modo democrático no plano internacional estabelecendo regras de jogo minimamente estáveis:   um verdadeiro milagre histórico. A outra alternativa seria a do funcionamento do sistema sem regras de jogo estáveis a reproduzir-se positivamente em meio ao caos: um milagre histórico ainda maior.

A este indicador decisivo é possível acrescentar outros como a tendência (desde os anos 1970 até o presente) à desaceleração do crescimento global, a hipertrofia (hegemónica) as redes financeiras cuja expansão entrou no nível da metástase invadindo-degradando a totalidade do sistema global, a evidência de rendimentos produtivos decrescentes da revolução tecnológica que submetida à dinâmica do capitalismo parasitário vai-se convertendo num factor de destruição líquida de forças produtivas, o estancamento ou declínio na extracção de recursos naturais não renováveis decisivos (como por exemplo o petróleo), a decadência do estado burguês, sua transformação nos países centrais num aparelho manipulado por bandos mafiosos, a desintegração social no centro, principalmente nos Estados Unidos.

As diferentes "crises" das últimas quatro décadas ficam portanto inscritas num processo de decadência sistémica de longa duração. A última crise iniciada em 2007-2008 inaugurou uma etapa em que a decadência experimenta um gigantesco salto qualitativo. A tendência iniciada nos anos 1970 para a redução das taxas de crescimento económico global começa a bater no piso:   o fatídico crescimento zero. Ele já chegou para a União Europeia, para o Japão que depois de atravessá-lo agora navega na recessão e para os Estados Unidos, esgotam suas últimas artimanhas financeiras. As reactivações são cada vez mais custos e menos eficazes.

Os países centrais já se encontram a percorrer uma nova etapa em que o desemprego em grande escala, a concentração acelerada de rendimentos e o desmantelamento de tecidos produtivos passam a ser aspectos "normais" da sua vida económica e onde os discursos acerca de uma futura recomposição perderam toda a credibilidade. O que parecia ser uma fanfarronada de especialistas quando em Agosto de 2012 o banco francês Natixis anunciava que "a crise na zona euro pode durar até vinte anos" surge hoje como um prognóstico relativamente realista [6] . O que não parece realista é supor que a "zona euro" poderia sobreviver como espaço monetário comum durante duas décadas de contracção económica permanente, salvo se a referência futurista à "zona euro" limitar-se ao espaço geográfico.

É necessário ir mais além da economia integrando-a à totalidade social, o que nos permite descrever estratégias, interacções perversas entre estruturas militares, financeiras, mediáticas, religiosas, parlamentares, etc das potências centrais, ou seja, mecanismos de reprodução do sistema cujos manipuladores submergem-se no pântano do desespero, da psicologia do náufrago sem esperança. O capitalismo global bloqueado do ponto de vista económico elabora e põe em execução estratégias político-militares de rapina periférica destinadas a apropriar-se e explorar intensamente até ao esgotamento o conjunto de recursos naturais do planeta e espremer até a sua extinção os mercados periféricos compensando assim a redução dos benefícios produtivos e dos mercados internos centrais. A apontar contra a maior parte do território global e uma população de vários milhares de milhões de pessoas que o habitam, a referida estratégia ameaça provocar o maior desastre humano e ambiental da história.

Seria a liquidação a periferia, devorada numa poucas décadas. Mas a história do capitalismo, desde a sua origem, é a da articulação imperialista entre centro e periferia. Sendo esta última a base central na reprodução ampliada da civilização burguesa, a sua destruição integral equivaleria à anulação de um pilar decisivo do sistema. Mais ainda:   se visualizarmos o "centro" e a "periferia" como formas específicas da totalidade capitalista mundial (não há desenvolvimento no centro sem subdesenvolvimento na periferia) a anulação do subúrbio global, sua transformação num caos não é o esmagamento de uma realidade externa e sim de um espaço inferior interno estreitamente inter-relacionado com os níveis superiores do sistema global através de um conjunto de redes visíveis e invisíveis, de infinitas inter-penetrações. A destruição [portanto] é a auto-destruição do mundo burguês, da sua história, de subsistemas decisivos para a sua reprodução.

A destruição do Iraque, do Afeganistão, da Líbia, da Síria, do México e das próximas vítimas pode chegar a ser pensada pelos membros mais duros das elites imperiais como uma auto-destruição parcial, sacrifício necessário para a sobrevivência do sistema. Nesse caso, encontramo-nos perante um pensamento delirante, uma profunda crise de percepção da realidade cindida artificialmente entre dois planetas:   o próprio, humano, desenvolvido, e o outro, simiesco, inferior, subdesenvolvido, condenado a perecer. Mas as estratégias imperiais não se limitam a circular pelo mundo imaginário, golpeiam o mundo real e ao fazê-lo desestruturam o sistema na sua totalidade:   a destruição da periferia converte-se em auto-destruição do capitalismo como totalidade universal.

As origens:  do parasitismo ao capitalismo industrial 

O Ocidente iniciou sua corrida imperial com uma primeira arremetida que terminou em fracasso. Ao despertar o segundo milénio produziram-se paralelamente fenómenos cuja interacção criou as bases para uma grande transformação social. As cruzadas foram a primeira tentativa séria, em grande escala, de ocupação e saqueio colonial de um espaço rico e o seu longo desenvolvimento engendrou mudanças e ampliações significativas das actividades militares. Por outro lado, redes de mercadores e banqueiros começaram a instalar-se implantando embriões de capitalismo.

Na mesma época, impulsionado por um sector "modernizador" da igreja, os monges cisterciences, desenvolveu-se um conjunto de inovações técnicas que alguns historiadores qualificam como "primeira revolução industrial". Elas causaram transformações da produção agrícola em espaços limitados da Europa ocidental (introdução do moinho hidráulico, do arado metálico, difusão de melhoras de sementes, etc). Também foram dados importantes passos estabelecendo elementos embrionários para futuros desenvolvimentos da ciência moderna. Um dos seus capítulos decisivos foi a dessacralização da "natureza", sua percepção como realidade externa, hostil mas que podia ser racionalizada, controlada, explorada, base das grandes revoluções tecnológicas do capitalismo... e do desastre ambiental que agora experimentamos [7] .

Encontramo-nos assim perante o desdobramento de uma grande transformação cultural apoiada no militarismo colonial e em emergências comerciais e financeiras, engendrando desenvolvimentos técnico-produtivos, ideológicos, etc. A ascensão do parasitismo colonial, militar, comercial e financeiro começava a produzir modernidade burguesa.

Mas as cruzadas foram derrotadas. A expansão colonial em direcção ao rico Médio Oriente foi contrariada pela resistência das vítimas, frustrando o saqueio. Por outro lado, os esforços e êxitos iniciais dos saqueadores havia desordenado a sua retaguarda:   a cristandade ocidental (o espaço imperialista). A combinação desses processos gerou no Ocidente um retrocesso produtivo geral, lutas intestinas, a deterioração do sistema alimentar e do estado de saúde da população. Tudo isso culminou em meados do século XIV com a "peste negra", epidemia que se expandiu facilmente numa sociedade frágil atravessada pela fome e causou uma gigantesca queda demográfica.

Esse mega desastre significou a sepultura do feudalismo que vinha sendo desestabilizado pela sua expansão interna e externa. Isso incluiu o seu sistema militar:   o ano 1348 é o do início da peste negra mas em 1346 verificou-se a batalha de Crecy onde a cavalaria francesa com as suas imponentes e pesadas armaduras, força blindada aparentemente invencível, foi derrotada pela infantaria inglesa assinalando o ocaso da velha configuração social [8] [NT] .

Mas a segunda arremetida colonial teve êxito. A sucessão de ondas de pilhagem e controle da periferia iniciada no século XV culminou, quase quinhentos anos depois, com a dominação total do planeta. Os pilares sobre os quais se instalou a modernidade foram em primeiro lugar a depredação periférica que potenciou a expansão comercial e financeira e, apoiado por esta última, o desenvolvimento das estruturas militares, sua renovação técnica, parte essencial do desenvolvimento de estados despóticos. Foi esse complexo colonial, estatal, militar, comercial e financeiro o pai da modernidade burguesa, acumulando riquezas, destruindo estruturas sociais internas e criando mercados prósperos, açambarcando terras, expulsando camponeses para as cidades, formando desde fins do século XVIII massas de pobres urbanos, mão-de-obra barata do capitalismo industrial. Historicamente não foi o capitalismo produtivo (e a cultura burguesa em geral) o berço do estado moderno, do militarismo e das finanças e sim exactamente o inverso.

Com toda razão, Robert Kurz referia-se às "origens destrutivas do capitalismo" colocando o desenvolvimento militar como o disparador da modernidade [9] . O "Arsenal de Veneza", fábrica militar avançada do século XVI sem cuja existência é impossível explicar o resultado da batalha de Lepanto, ou seja, a vitória estratégica do Ocidente sobre o Império Otomando, foi uma das escolas mais importantes de organização industrial. Suas inovações em matéria de divisão e programação do trabalho assentaram as bases da produção capitalista.

Mas junto ao senhor da guerra, à monarquia despótica, encontrava-se o banqueiro, por sua vez ligado a negócios comerciais. Exemplo:   a Casa Fugger, facilitando fundos ao imperador Carlos I e seu descendente Felipe II, titulares de um vasto sistema colonial.

A revolução industrial chegará mais de dois séculos depois, disposta sobre um enorme excedente (surplús) histórico [10] que foi não só acumulação de riquezas coloniais como também disciplinamento social por parte do estado e do seu dispositivo militar.

Desta vez o parasitismo pôde parir capitalismo com tanto êxito que conseguiu ocultar a memória das suas origens e desse modo instalar armadilhas ideológicas destinadas não só a construir legitimidade produtivista como também para confundir tanto os seus partidários como os seus inimigos.

Uróboros. 

mito de uróboros, da serpente que se devora a si mesma atravessa várias civilizações desde a Grécia Clássica até o Antigo Egipto, chegando ao Ocidente medieval. Fundamenta-se na ilusão conservadora de que a serpente começa devorando sua cauda e ao fazê-lo vai regenerando seu próprio corpo num jogo infinito onde o começo é ao mesmo tempo o fim e vice-versa, consumando-se o eterno retorno, a imortalidade do mundo. O mito pareceria encontrar uma referência concreta em casos observáveis desse animal a alimentar-se e suicidar-se ao mesmo tempo. O espectáculo é aterrador.

A confrontação entre o mito e a sua referência real sugere a reflexão em torno do que poderia ser qualificado como "armadilha de uróboros":   a civilização burguesa, tal como outras civilizações anteriores em decadência, considera que devorar uma parte mais longínqua, menos próxima da cabeça imperial, recupera forças e dinamiza seu funcionamento. Não experimenta nenhuma sensação de horror, não se angustia e sim, muito pelo contrário, provisoriamente sente-se melhor, melhora a sua auto-estima fundada no esmagamento e pilhagem dos fracos. Para que se ponha em marcha e avance o processo de suicídio é necessário que o suicida realize uma espécie de ruptura psicológica com a parte do seu corpo que está a ser sacrificada. A cauda deixa de ser cauda ou, talvez, passa a ser a cauda de outro animal. A periferia deixa de ser periferia do sistema e converte-se em outro universo, seus habitantes deixam de ser seres humanos. A realidade afasta-se da cabeça, a crise de percepção converte-se em loucura suicida.

O fenómeno tem antecedentes na história do sistema, nos seus mecanismos de reprodução desde as suas origens mais longínquas, atravessando suas etapas mais prósperas.

Dito de outro modo, debaixo das revoluções culturais e produtivas da modernidade, do progresso no seu sentido mais amplo, podemos encontrar pistas que nos conduzem ao actual processo de auto-destruição sistémica global. A dissociação homem-natureza, fundamento das revoluções técnicas da modernidade, converte-se finalmente em degradação ambiental planetária. A exploração imperialista da periferia, interacção desenvolvimento-subdesenvolvimento como motor histórico da expansão global de forças produtivas tende agora ao extermínio de sociedade e recursos naturais, as finanças impulsionadoras de mercados e investimentos industriais transforma-se em devoradora de tecidos produtivos e capacidades de consumo, etc.

O mito de uróboros exprimiu-se na tradição europeia-nórdica como Jörmungander, uma gigantesca serpente cujo crescimento, numa das versões do tema, leva-a a rodear completamente o planeta até chegar à sua própria cauda iniciando-se a autofagia apresentada como o resultado inevitável do êxito do processo expansivo. Este encontra o limite superior, o máximo nível de expansão, não como fronteira externa ao monstro e sim como auto-bloqueio. A solução para a tragédia não passa por persuadir a serpente, totalmente decidida a seguir o rumo escolhido inscrito na sua dinâmica de desenvolvimento, e sim na metamorfose – a transformação radical da besta num ser diferente. Não há outro capitalismo possível, o que abre a perspectiva do pós-capitalismo e instala dramaticamente a sua necessidade histórica.

(1) Robert Kaplan, " El retorno de la Antigüedad" , Ediciones B, Barcelona, 2002.
(2) Juvenal, Satiras, Editorial Gredos, Madrid, 1991, Satira VI.
(3) Angelo Tasca, "El nacimiento del fascismo", pp. 152-153, Crítica, Barcelona, 2000.
4) Max Horkheimer, "Éclipse de la Raison", pp. 29-30, Payot, París, 1974.
(5) Os dados estatísticos aqui assinalados apoiam-se em números dos anos 2011 e 2012.
(6) Natixis, " The euro-zone crisis may last 20 years ", Flash Economics-Economic Research, August 16th 2012 - Nº 534
(7) Jean Gimpel, "La révolution industrielle du Moyen Age", Éditions du Seuil, Paris, 1975.
(8) A batalha de Crecy constituiu um acontecimento decisivo mas não foi a primeira da série. Em 1302 as milícias populares de Courtrai (Bélgica) haviam derrotado a pé, com chuços e lanças, a cavalaria feudal do Conde de Artois. A cavalaria feudal foi-se desmoronando gradualmente, golpeada por uma realidade social em transformação. Em 1415, a batalha de Agincourt, onde novamente a cavalaria francesa foi aniquilada pela infantaria inglesa, encerra definitivamente o ciclo militar do feudalismo. O processo desenvolveu-se ao longo do espaço europeu durante algo mais de um século. Exemplo: a infantaria suíça derrotou a golpes de machado (uma alabarda com mais dois metros de comprimento) a cavalaria austríaca em Morgarten (1315), Laupen (1339), Sempach (1386).
(9) Robert Kurz, "Los orígenes destructivos del capitalismo", 1997,
(10) Anouar Abdel Malek, "Political Islam", Socialism in the World, Number 2, Beograd 1978. 

[NT] Caso análogo ao da batalha de Aljubarrota, em que a infantaria portuguesa derrotou a cavalaria castelhana. Ver artigo do General Vasco Gonçalves:   A Revolução de 1383-85

[*] Professor da Universidade de Buenos Aires. Comunicação apresentada na jornada internacional "CHAVEZ SIEMPRE" Crisis mundial y agresiones imperialistas:   Venezuela y las luchas emancipadoras en Nuestra América. Jueves 23 mayo, Auditorio Alcaldía Girardot, Maracay. Tradução de JF. 

Este ensaio encontra-se em http://resistir.info/ .

18 de julho de 2013

O PT E AS RÁDIOS COMUNITÁRIAS: 10 ANOS DE SOLIDÃO

O PT E AS RÁDIOS COMUNITÁRIAS: 10 ANOS DE SOLIDÃO

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Dioclécio Luz*. (no portal Pátria Latina)

O objetivo deste artigo é fazer um registro do que ocorreu no período de uma década com relação às rádios comunitárias no Brasil, quando o Governo esteve sob o comando do Partido dos Trabalhadores. Analisam-se as ações do Executivo (o Governo estritamente falando), e suas relações com o Legislativo e as representações da sociedade civil.

Marco zero: o início do fim

O presidente Lula assumiu em janeiro de 2003, quando já estava em vigor a Lei 9.612/98 que regulamenta as rádios comunitárias (RC). A legislação incorpora ainda o Decreto 2.615/98 e a Norma Técnica 01/11.

Nesses dez anos de poder, o Governo PT, que podia alterar toda legislação, somente mudou a Norma Técnica - e para pior. Ao mesmo tempo deu mais poderes à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), antes criticada veementemente pelo PT. Logo ao assumir, o Governo PT ampliou a repressão às emissoras não autorizadas, algo que o partido também criticava antes. A título de exemplo, em 2005 (dois anos de PT) foram fechadas 1086 emissoras de rádio que funcionavam sem autorização. Isso equivale à média de 90/mês ou 3/dia. No ano seguinte a Anatel foi mais eficiente ainda, atingindo a média de 95/mês. Uma média que tem crescido ano a ano.

É preciso deixar bem claro que, ao lidar com as rádios comunitárias, o Partido dos Trabalhadores tem adotado uma posição ideológica de direita. O pior é que faz isso camuflado como aliado das RCs, como se estivesse atuando com elas. O Governo rebate as críticas acusando os críticos de estarem numa "disputa política". Diz ainda que essa crítica está a serviço da "direita", como se este Governo agisse pela "esquerda". Ocorre que esta postura de avestruz oculta um mundo real demarcado claramente por uma linha ideológica de direita; uma linha que segrega e exclui quem faz rádios comunitárias.

A bem da verdade, não se pode generalizar: nem todos os petistas instalados no Governo agiram contra as RCs. Tanto no Executivo quanto no Legislativo petistas mantiveram sua coerência defendendo as rádios comunitárias. A questão é que estes não têm poder para definir e implantar uma política para o setor. Fez isto o núcleo majoritário do PT no Governo: camuflando-se para se passar por aliado, reproduzindo um falso discurso democrático para justificar os abusos.

Mas como o Governo PT sustentou essa farsa por dez anos? Por que só uns poucos revelaram que havia uma farsa, uma engabelação? Uma das respostas está na utopia: acreditou-se que o PT, sendo guardião da utopia da esquerda, faria as mudanças pretendidas para o setor. Esta é uma visão romântica (e messiânica) que o Partido explora, manipulando "a esperança do povo".

Todavia, isso ainda não é o bastante para explicar como "tantos foram enganados por tanto tempo" aceitando promessas de que algo jamais seria feito pelas rádios comunitárias. Ocorre que o Governo PT fez uso de expedientes que pareciam apontar para o debate democrático no setor. Um deles é o discurso em defesa da "democracia na comunicação"; outro, o uso de práticas que sugerem uma "construção coletiva", ou um "processo coletivo e democrático" – termos caros aos utópicos defensores do setor.

Por exemplo, se o processo democrático, como se sabe, inclui a abertura de "diálogo com a sociedade", os dirigentes, autoridades, técnicos agora participam de eventos, debates e reuniões. Ocorre que não resultam em nada... O Governo também abre "consultas públicas" - para rejeitar tudo que representa mudança positiva; cria Grupos de Trabalho - para descartar as propostas que não lhe agradam; abafa as reivindicações com promessas que não se cumprem. Quando este Governo é questionado por que não modifica a legislação ele responde com três clichês: 1) "esta é a legislação possível"; 2) "esta é a mudança possível"; 3) somente o Legislativo pode fazer isso. As três opções se constituem em meias verdades.

É claro que o PT poderia ter feito muito mais. Em dez anos de poder, salvo as exceções de praxe (servidores e técnicos que continuam atuando em defesa das RCs) , o Governo do Partido dos Trabalhadores enganou, ludibriou, enrolou os que fazem rádios comunitárias. E é dessa engabelação política – uma mentira na história - que se fala aqui.

Primeiro: a ignorância é saudável

No município de Santa Luz, sertão da Bahia, funciona uma boa rádio comunitária, a Santa Luz FM: sua gestão é democrática, não pertence a padre ou pastor, não tem jabá, a comunidade participa ativamente. É assim desde 1998, quando a RC surgiu. Como não tinha autorização de funcionamento, a Santa Luz FM foi tratada como "pirata" e fechada pelo menos quatro vezes pela Polícia Federal e Anatel. Em 2007, quando a rádio ainda era tratada como "pirata" pelo Governo do PT porque operava emissora sem autorização, seu diretor, Edisvânio Nascimento, ganhou o prêmio de "Jornalista amigo da criança", concedido pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI). Na época Edisvânio nem tinha formação em jornalismo (agora está concluindo). Hoje a rádio tem autorização - a Santa Luz levou dez anos para conseguir o documento.

Ocorre que o Palácio do Planalto e o Ministério das Comunicações não fazem a mínima ideia de onde fica Santa Luz, tampouco sabem que lá existe uma boa rádio comunitária e que uma equipe desta rádio foi premiada pela competência jornalística. O Governo não quer saber disso. Na verdade não sabe nem o que é uma rádio comunitária. A única leitura permitida é a política, mas uma política pobre, maquiavélica, apartando o Bem (quem tem poder) e o Mau (quem não tem). Esta ignorância é saudável para um Governo que somente negocia com quem tem poder.

Segundo: inúteis Grupos de Trabalho

O Ministério das Comunicações (MC) cuida para que a ignorância seja regra. Os interlocutores do MC com a sociedade civil (muda, em média, um a cada seis meses) são tecnocratas, que, equivocadamente, entendem sua função pública como uma função política. Dotados de micro-poderes, esses tecnocratas fazem um esforço tremendo para que as relações de poder sejam mantidas. Na prática, significa que eles não precisam conhecer rádios comunitárias, mas as relações de poder dentro do processo. Atuam no processo administrativo fazendo política. Neste ponto, configura-se um grave erro: eles não cumprem a função de servidores públicos. Como se estivessem no setor privado servem à linha determinada pelo dirigente e não ao interesse da sociedade. Por isso não precisam conhecer de RC. Precisam conhecer as normas, as regras, saber como "vigiar e punir" (Foucault). São os capatazes da Casa Grande; cabe-lhes elaborar normas para controlar e punir as RCs.

Diz o senso comum que quando não se quer resolver um problema se monta uma comissão ou um Grupo de Trabalho. O PT seguiu essa regra. Nos dez anos de PT dois Grupos de Trabalho (GTs) foram instituídos para tratar de rádios comunitárias. Seguindo a tradição, os dois foram inúteis.

O primeiro GT foi constituído no início do Governo do PT. Formado por representantes do Ministério das Comunicações e da sociedade civil, foi criado em março de 2003 (Portaria nº 83, do Ministério das Comunicações, 24/03/03), iniciando seus trabalhos no dia 2 de abril. O ministro das comunicações na época era Miro Teixeira (deputado federal pelo PDT do Rio de Janeiro). O objetivo do GT era burocrático: propor métodos para agilizar a burocracia no órgão (eram 4.300 processos de RCs parados no MC). Depois de 90 dias o GT apresentou suas conclusões, entre elas um Projeto de Lei modificando a lei 9.612/98. O PL proposto foi para o lixo e mudanças pequenas foram introduzidas na burocracia.

O segundo GT veio em 2004. O Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) foi criado por Decreto Presidencial (assinado por Luiz Inácio Lula da Silva) em 26 de novembro, com a finalidade de...

analisar a situação da radiodifusão comunitária no País e propor medidas para disseminação das rádios comunitárias, visando ampliar o acesso da população a esta modalidade de comunicação, agilizar os procedimentos de outorga e aperfeiçoar a fiscalização do sistema.

Coordenado pelo Ministério das Comunicações, as atividades do GTI tiveram início no dia 3 de fevereiro de 2005 e foram concluídas no dia 10 de agosto de 2005.

O relatório final do GTI revelou o que todo mundo sabia: 1) algumas rádios sem autorização são comunitárias; 2) muitas rádios que receberam autorização não são comunitárias. O documento observa que, se no Ministério das Comunicações um processo demora em média 26 meses, no Palácio do Planalto o tempo médio entre a entrada e saída de um processo é de 14 meses. Este tempo é a prova de como um trâmite burocrático foi transformado em balcão de "negócios políticos". Este nova etapa de avaliação - e desta vez exclusivamente política -, não existia no Governo Fernando Henrique Cardoso (responsável pela Lei 9.612/98). Em tese, cabe ao Planalto apenas "carimbar" o processo e encaminhá-lo para o Congresso Nacional. Mas isso não acontece. O processo para no Palácio do Planalto. Essa parada demora o tempo de negociação com os poderes envolvidos. E, claro, se uma rádio não conta com padrinhos políticos, se não aparece ninguém para negociar por ela, por melhor que seja seu projeto a RC está condenada a uma espera que pode chegar à dezena de anos. Por isso emissoras como a Santa Luz – de qualidade, mas sem padrinho político ou religioso – esperam 10 anos para conseguir outorga. Consta que o balcão funciona até hoje dentro do Palácio do Planalto – é preciso um político, padre ou pastor para que o processo seja encaminhado ao Congresso Nacional.

O relatório do GTI omitiu a existência desse "balcão de negócios". No entanto, estudo desenvolvido por Cristiano Lopes e Venício Lima ("Coronelismo eletrônico de novo tipo (1999-2004): as autorizações de emissoras como moeda de barganha política"), mostra que ele existe ou existiu, pelo menos no período. O estudo mostra como a Igreja Católica tem abocanhado concessões de RCs:

No total, em 120 (5,4%) rádios comunitárias pesquisadas foi encontrado algum tipo de vínculo religioso. O domínio de vínculos pela religião católica é notável. Dessas 120 rádios, 83 (69,2%) eram ligadas à igreja católica, 33 (27,5%) a igrejas protestantes, 2 (1,66%) a ambas, 1 à doutrina espírita (0,8%) e 1 (0,8%) ao umbandismo. (LIMA, V.; LOPES, 2007).

Esse mesmo Estado que é tão rigoroso no fechamento de emissoras não autorizadas, fecha os olhos à lei e distribui autorizações para os seus aliados políticos e religiosos. A Lei 9.612/98 – artigo 4º e artigo 11 – veda às religiões o comando de rádios comunitárias, mas o Governo, contraindo essa lei, distribuiu autorizações para os religiosos. Eis dois exemplos, com dados oficiais:

Processo nº 53770.000456/99. Licença Definitiva para a "Associação Comunitária Nossa Senhora de Copacabana", localizada na rua Hilário Gomes, 36, Copacabana, Rio de Janeiro. No local funciona a Igreja Nossa Senhora de Copacabana. (fonte: Ministério das Comunicações).

Conclusão: embora autorizada, a rádio está sob o comando da Igreja Católica.

Processo nº 53000.000210/00. Autorização concedida à "Associação de Assistência Social Casa da Benção", localizada, de acordo com o MC, à Área Especial 5 - Setor F Sul Taguatinga Sul, Distrito Federal. A Catedral da Casa Bênção funciona no mesmo endereço, com o nome de fantasia de "Rádio ondas da bênção" (http://www.catedraldabencao.org.br). (fonte: Ministério das Comunicações).

Conclusão: embora autorizada, a rádio está sob o comando da Igreja evangélica Casa da Bênção.

Para os autores do estudo, essa forma de distribuição de outorgas de rádios comunitárias é "um comportamento que remonta ao velho Estado patrimonialista, no qual não havia limite entre o público e o privado e os patrimônios do Estado e do governante terminavam por se misturar". Foi visto que:

Dos 1.106 casos detectados em que havia vínculo político, exatos 1.095 (99%) eram relativos a um ou mais políticos que atuam em nível municipal. Além disso, todos os outros 11 casos restantes são referentes a vínculos com algum político que atua em nível estadual ou candidatos derrotados a cargos de nível federal. Não houve nenhum caso detectado de vínculo direto entre emissoras comunitárias e ocupantes de cargos eletivos em nível federal. (LIMA, V.; LOPES, 2007).
As conclusões do estudo:
1. Durante a gestão de pelo menos dois ministros após a edição da Lei 9.612/98, há indícios de preferência na distribuição de outorgas de interesse político do próprio ministro.

2. O Palácio do Planalto acelerou processos ou reteve outros conforme interesses políticos.

3. Há uma "intensa utilização política das outorgas de radiodifusão comunitária". Ela se dá em dois níveis: no municipal, em que as outorgas têm um valor político localizado; e no estadual/federal, aí as rádios comunitárias são controladas por forças políticas locais que devem o "favor" de sua legalização a um padrinho político.

Quanto ao relatório do GTI...

Ele faz um diagnóstico da situação, mas apresenta propostas "medrosas", pouco alterando a atual situação.

Como o GT anterior, as conclusões deste GTI também foram para o lixo. Mas, desta vez com um elemento insólito: embora o relatório tenha sido amplamente divulgado, é como se ele não tivesse existido - nunca foi oficialmente reconhecido pelo Governo.

Terceiro: omissão é posição

A legislação em vigor foi feita para impedir a existência das RCs. Sancionada pelo governo anterior (Fernando Henrique Cardoso) o Governo petista optou pelo mais cômodo, fazer-se de cego, omitiu-se. E ao fazer isso, na prática, posicionou-se pela lei em vigor. Por isso, criada há 14 anos, a legislação permanece com seus absurdos.

O absurdo mais flagrante é o limite de alcance para 1 Km de raio. Isso não está na lei, foi uma invenção do Executivo. O artigo 1º da Lei 9.612/98 estabelece que a potência da RC deve ser limitada a 25 w. O Decreto 2.615/98, porém, vai além e diz que o alcance da rádio não deve ultrapassar 1 km. Na prática, o Executivo mudou o conteúdo da lei fazendo uso de um Decreto - o que é ilegal! Com isto o Estado (que é quem aplica a legislação) ampliou mais ainda o caráter restritivo da Lei. Ele impôs uma comunidade com fronteiras eletromagnéticas; substituiu as antigas e verdadeiras fronteiras da comunidade – definidas por relações humanas, culturais e geográficas - por "cercados eletromagnéticos", com limites restritos a um círculo de raio de 1 km.

Antes, pela Lei, a RC deveria atender a "comunidade do bairro e/ou vila". Com a redação dada no Decreto, a RC deve atender somente a quem está dentro desse círculo de raio de 1 km. O Estado criou um espaço que não existia, uma espécie de gueto ou "campo de concentração", cercado por redes eletromagnéticas – dentro dele deve operar a rádio e devem morar seus dirigentes.

Por que o Governo do PT não mudou isso? Porque fez uma opção política em função de uma linha ideológica. É a mesma que está inserida na Lei 9.612/98 (art. 5º), quando se determina que as RCs devam transmitir em um só canal (uma faixa limitada de frequências), indicando-se um canal alternativo quando não for possível usar o primeiro indicado. Que canais são estes? Em tese devem estar dentro do dial de Frequência Modulada (FM), a faixa que vai de 88 a 108 MHz. Afinal todo receptor de rádio FM é construído para receber sinais dentro dessa faixa – faz parte de um acordo internacional entre os países.

Mas o Estado brasileiro inovou...

Em 1998, através da Resolução 60, a Anatel decidiu que as rádios comunitárias deveriam operar no canal 200 (faixa de 87,9 MHz, a 88,1 MHz). Isso era no Governo FHC. Em 2004, já no Governo do PT (Lula), a Anatel, através da Resolução 356, diz que as RCs devem ocupar, também, os canais 198 e 199 (faixa de 87,5 MHz a 87,7 MHz). Portanto, para as RCs de todo Brasil foi destinada a faixa de freqüências que vai de 87,5 MHz a 88,1 MHz. Ocorre que salvo a freqüência de 88,1, tais canais estão fora do dial! Se, como foi visto, a faixa de FM vai de 88 a 108 MHz, para quem a RC vai transmitir se os receptores de FM não recebem abaixo de 88 MHz?

Isso não importa para o Governo petista que se associa a Anatel para defender que os aparelhos de rádio recebem nessa faixa. A Anatel chegou a apresentar estudos técnicos para provar que isto é possível. Não consegue provar, porém, que este ato não é uma discriminação – para nenhuma emissora comercial ou educativa foi designado canal nestas condições, fora do dial.

A legislação que o Governo do PT não quis modificar é repleta de atos de segregação. Ela exige que os dirigentes da emissora residam dentro do círculo determinado pelo raio de alcance de 1 km; veda a formação de redes; veda a publicidade, permitindo apenas o "apoio cultural"; estabelece que se a RC interferir sobre outro serviço de telecomunicações ela será punida, porém se ocorre o contrário, se uma emissora comercial interfere no sinal da RC, conforme a Lei, o Estado nada vai fazer.

Quarto: vigiar e punir

Em outubro de 2011 o Ministério das Comunicações resolveu mudar a legislação. E começou mudando a Norma Técnica 01/04. Essa mudança adquire um caráter simbólico porque foi a única alteração da legislação de RC em 10 anos de Governo do PT. Imaginava-se que o PT tivesse ouvido as rádios comunitárias e apresentasse propostas que reduzissem os efeitos negativos dessa legislação. Era o que se esperava de um Partido que tinha, no seu discurso, um apelo social e, por base, as camadas populares. Não foi o que aconteceu.

Entenda-se, a legislação do Serviço de Radiodifusão Comunitária se constitui basicamente (e hierarquicamente) da Lei 9.612/98, seu Decreto regulamentador, 2.615/98, e, hoje, da Norma Técnica, 01/11. O mais sensato seria, primeiro, mudar a lei, depois o Decreto e, por fim a Norma.

O Executivo não mudou o Decreto, que é de sua alçada, optando por fazer uma nova Norma Técnica, a 01/11 (está em vigor hoje). Deste modo o PT entra na história das rádios comunitárias por ter assinado uma mudança da legislação que a torna pior do que já era.

Deve-se entender a Norma como um discurso institucional, uma fala do Poder. E, por ser uma Norma técnica, é um discurso do poder que se apresenta semioticamente com "virtudes": ela teria autonomia (teria sido construída em ambiente alheio aos conflitos do setor), seria necessária (ao processo burocrático), seria apolítica (teria sido construída em ambiente alheio à política). Portanto, impositivo por natureza, a Norma técnica é um discurso do Governo do PT – ela "diz o que o Governo pensa sobre o assunto".

O discurso expresso nesta Norma objetiva manipular. O manipulador, o Governo, quer submeter (manipular) os que querem fazer rádio comunitária.

A manipulação envolve não apenas o poder, mas especificamente abuso de poder, ou seja, dominação. Mais especificamente, a manipulação implica o exercício de uma forma de influência deslegitimada por meio do discurso: os manipuladores fazem os outros acreditarem ou fazerem coisas que são do interesse do manipulador, e contra os interesses dos manipulados (VAN DIJK, Teun A. Discurso e poder. São Paulo, Contexto, 2008).

Esse mascaramento do discurso, essa tentativa de manipulação das pessoas, é um ato ilegítimo.

Definimos como ilegítimas todas as formas de interação, comunicação ou outras práticas sociais que servem apenas aos interesses de uma parte e são contra os interesses dos receptores. (idem, p. 238).

A pretensão do discurso/norma é controlar as pessoas, "vigiar e punir", mais exatamente, que é título de célebre estudo do francês Michel Foucault sobre os métodos adotados historicamente para conter e punir os criminosos (Rio de Janeiro, Petrópolis: Vozes, 2009). No caso, "criminosos" são os que fazem ou pretendem fazer rádios comunitárias de forma independente. Para tanto, segundo Foucault, o Poder faz uso do que se entende por "ordem disciplinar" - um conjunto de práticas de controle, sistematizadas a partir do Século XIX e usadas até hoje nas mais diversas instituições. O objetivo dessa ordem disciplinar é humilhar e controlar, vigiar e punir aqueles que poderiam desobedecer ao poder.

A punição e a vigilância são poderes destinados a educar (adestrar) as pessoas para que essas cumpram normas, leis e exercícios de acordo com a vontade de quem detêm o poder. A vigilância é uma maneira de se observar a pessoa, se esta está realmente cumprindo com todos seus deveres – é um poder que atinge os corpos dos indivíduos, seus gestos, seus discursos, suas atividades, sua aprendizagem, sua vida cotidiana. A vigilância tem como função evitar que algo contrário ao poder aconteça e busca regulamentar a vida das pessoas para que estas exerçam suas atividades. Já a punição é o meio encontrado pelo poder para tentar corrigir as pessoas que infligem as regras ditadas pelo poder e ela também é o meio de impedir que essas pessoas cometam condutas puníveis (através da punição as pessoas terão receio de cometer algo contrário às normas do poder). A vigilância e a punição podem ser encontradas em várias entidades estatais, como hospitais, prisões e escolas (FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Rio de janeiro, Petrópolis: Vozes, 2009).

A Norma 01/11 é o discurso da "direita", tanto criticada pelo PT. Por exemplo, ela restringiu a forma de patrocínio da RC. Se a Lei diz que o patrocínio somente pode ser feito por estabelecimentos instalados na área em que funciona a rádio comunitária, a Norma diz que o "apoio cultural" não pode divulgar ofertas, produtos, valores. Pergunta-se: qual a loja ou serviço vai patrocinar uma RC sabendo que não pode colocar os valores da oferta?

A bem da verdade, antes de existir uma definição de apoio cultural a Anatel já usava esta que agora se impõe. Ou seja, ela aplicou multas em diversas rádios por descumprirem uma regra que não existia! Este abuso da Anatel (punir sem ter norma legal para tanto) contou com a colaboração do Ministério das Comunicações, que tornou público em seu site uma regra inexistente como se fosse norma legal. Bem antes da Norma ser publicada, esse texto estava lá no site do MC (pelo menos até 13/05/11) como resposta às "perguntas mais frequentes". Os redatores da Norma copiaram o texto e colaram na nova Norma.

Quanto à nova Norma 01/11. Ela amplia a burocracia e o controle sobre as pessoas. Para tanto pede (item 8.1.d) a lista...

De todos os associados pessoas físicas, com o número do CPF, número do documento de identidade e órgão expedidor mais o endereço de residência ou domicílio, bem como de todos os associados pessoas jurídicas, com o número do CNPJ e endereço da sede.

Qual o interesse do Estado em saber quem faz parte da associação?

Quais as suas pretensões? Imagine-se o calhamaço que vai render uma associação como a Rádio de Heliópolis, São Paulo, instalada numa comunidade com 125 mil pessoas. O que o Ministério das Comunicações pretende fazer com uma lista contendo os dados de centenas ou milhares de pessoas, com a especificação de nome, endereço, CPF? Vai verificar a autenticidade de cada uma? Ao que parece temos aqui uma prática comum a regimes ditatoriais objetivando controlar as pessoas.

Ainda nesta Norma, o Governo pede ao interessado "declarações" aparentemente absurdas para conceder a autorização. Um exemplo: é solicitado aos dirigentes das emissoras declarações de que seguirão a norma legal. Ora, qual a lógica em solicitar de concessionário de serviço público papel assinado dizendo que ele vai seguir a lei?

Não se trata, porém, de uma insensatez. Os que redigiram essa Norma não são nada insensatos. Pelo contrário. A Norma é parte de uma estratégia de manutenção do Poder, baseada numa determinada postura ideológica.

(*) assessor parlamentar na Câmara dos Deputados, Dioclécio Luz é uma importante liderança no movimento de rádios comunitárias, autor de vários livros sobre o assunto.