6 de setembro de 2009

A CRISE DO SOCIALISMO, A REESTRUTURAÇÃO DO CAPITALISMO E OS NOVOS DESAFIOS DOS TRABALHADORES - Por: Duarte Pereira


É importante compreender que a crise do socialismo, deflagrada nas décadas finais do século passado, é geral. Não representa um fato isolado. Trata-se de um processo histórico-mundial, em que as diferentes experiências socialistas, uma após outra, foram entrando numa situação de impasse e, em sua maioria esmagadora, acabaram derrotadas. Isto significa que, ao lado das causas particulares de cada país, existem causas gerais e que estas são as mais importantes.

No exame dessas causas gerais, parece-me que devemos partir do princípio de que o socialismo é um tipo de formação social que só pode ser construído democraticamente e cientificamente. Se se pretender construí-lo negando a iniciativa das massas trabalhadoras, com base em uma camada tecnoburocrática ou em setores isolados de trabalhadores, ele se torna inviável.

Pois o socialismo não é uma solução tecnocrática, inventada em gabinetes, para certos problemas econômicos ou sociais. É a construção de uma sociedade nova a partir da luta, da iniciativa e das aspirações dos operários e demais trabalhadores. Se esses operários e trabalhadores não forem incorporados ao processo, se não o assumirem como um desafio deles, o socialismo é impossível. O socialismo não pode ser imposto à classe proletária e aos demais trabalhadores.

O outro aspecto é que o socialismo também precisa ser construído cientificamente. Ao contrário das outras formações sociais, dos outros modos de produção, cuja construção podia (e, no caso do capitalismo, ainda pode) ser em larga escala espontânea, o socialismo implica a existência de uma economia planificada, exige elevado grau de consciência em sua construção e apurado esforço de compreensão da realidade. Se houver falhas nesse terreno, e o que vigorar for um processo empírico e pragmático, ou uma visão dogmática que leve à estagnação da teoria, o socialismo também fracassa.

A forma como foi aplicada a chamada ditadura do proletariado contribuiu para que as experiências de construção do socialismo no século passado se afastassem desses princípios básicos. Do ponto de vista do marxismo, o que sempre se pretendeu e se propôs foi a ditadura da classe proletária contra a classe burguesa, não a ditadura de uma vanguarda em nome da classe e muitas vezes contra ela. As experiências históricas de ditadura do proletariado levaram, de certa forma, a uma substituição da classe pelo partido, progressivamente do partido por suas direções e, no fundo, por um grande dirigente ou um grupo de dirigentes. Esse tipo de processo não tem futuro.

O fato de a totalidade das experiências socialistas ter acontecido em países relativamente atrasados do ponto de vista do desenvolvimento capitalista complicou ainda mais. Nesses países, a classe proletária não era a maioria dos trabalhadores. Por isso, necessitava estabelecer uma aliança ampla com o campesinato e com certas camadas médias de trabalhadores, para que o novo poder representasse a maioria da população e tivesse uma base efetiva de sustentação. Este foi o segundo erro. Além de afastar-se da classe proletária e, em particular, de seu núcleo operário, o poder se distanciou das demais classes e camadas trabalhadoras. A questão de fundo é que o processo de transição para o socialismo teria de ser mais demorado, pois era mais complexo do que se imaginou.

Considere-se, por exemplo, o modo como a questão agrária foi enfrentada. É claro que não se pode construir o socialismo sem a coletivização da agricultura. A longo prazo, não pode subsistir a contradição entre uma estrutura industrial urbana socialista e uma estrutura agrária baseada na pequena produção e na pequena propriedade privada. Realizada a reforma agrária antilatifundiária, é preciso passar à socialização das formas de produção e propriedade no campo. Mas, como advertiu Engels, a coletivização deve ser efetivada de forma cuidadosa e gradativa, com a participação voluntária do campesinato trabalhador, pois entre o proletariado e o campesinato não existe uma contradição antagônica entre uma classe explorada e uma classe exploradora, mas uma contradição não-antagônica entre duas classes trabalhadoras. Por isso, a passagem da pequena propriedade privada para as grandes formas de produção coletiva, estatal ou cooperativa, teria que ser uma transição complexa e demorada, sobretudo em países como a União Soviética, em que o desenvolvimento das forças produtivas era muito atrasado e a massa camponesa tinha um peso social muito grande. Ora, sabemos que a coletivização da agricultura na União Soviética – um país de dimensão continental e com uma população formada por 80% de camponeses – foi realizada em apenas três anos.

É evidente que, em três anos, não se poderia coletivizar a agricultura da União Soviética com a participação plena e voluntária do campesinato trabalhador. Na verdade, aí teve origem um dos problemas fundamentais da experiência socialista na União Soviética: uma contradição jamais bem resolvida com o campesinato que, em grande parte, foi desapropriado à força, em nome da coletivização da agricultura.

A conclusão que se pode extrair de um estudo criterioso dessas experiências revolucionárias do século passado, portanto, é que a construção do socialismo, na União Soviética como nos países que se inspiraram em sua experiência pioneira, representou um processo em que, aos poucos, se deixou de planejar democraticamente e cientificamente os passos a serem dados. Não se aprofundou a compreensão crítica e científica do processo em curso.

Não houve apenas uma estagnação teórica, como alguns analistas comentam. Estagnação dá uma idéia de que surgiram problemas novos que não foram enfrentados, o que de fato ocorreu. Mas, mesmo no que diz respeito aos problemas antigos, a relação entre a prática e a teoria foi erradamente compreendida. Imaginou-se que os problemas já estavam teoricamente equacionados e que seria necessário, apenas, aplicar as soluções com firmeza. Na realidade, existiam inúmeros problemas, antigos e novos, que exigiam investigação e debate, que ainda careciam de soluções adequadas. E essa procura de soluções jamais é linear e tranqüila. Ela não se processa, em sua plenitude, sem a diferenciação de idéias e sem a existência de polêmicas. Aí também se vendeu uma idéia simplificadora e antidialética de que o processo do conhecimento pudesse desenvolver-se sem contradições e polêmicas.

Não se pode, por conseguinte, separar de forma absoluta a crise do socialismo da crise do marxismo. Precisamos entender o marxismo de forma histórica. Marx e Engels não nasceram marxistas, tornaram-se marxistas num determinado processo prático e teórico. Eles não poderiam formular sua concepção inteiramente nova da história, que exige um elevado grau de conhecimentos filosóficos e científicos, de uma hora para outra. Então, formularam em cima de determinados problemas, mas uma série de outros ficaram sem uma elaboração completa. Isso é fácil de verificar.

A filosofia marxista, por exemplo, nunca conseguiu um grau de elaboração semelhante ao que alcançou a economia política marxista, no que diz respeito à análise do capitalismo, com a obra O Capital. Marx pretendeu realizar esse trabalho, chegou a anunciá-lo numa carta a Engels, mas não conseguiu o tempo necessário. Lênin da mesma maneira. Até algumas obras filosóficas escritas por Marx e Engels ficaram desconhecidas dos marxistas por muito tempo. A Ideologia Alemã só foi publicada na década de 30. Os Cadernos Filosóficos – uma série de anotações de Lênin – só vão ser editados após a 2a Guerra Mundial e mesmo assim tiveram uma divulgação absolutamente restrita. Geralmente se acredita que o pensamento filosófico de Lênin está contido no Materialismo e Empirocriticismo, mas ali se encontra apenas uma parte dele. A outra parte, quando Lênin inclusive reformula opiniões anteriores, ficou completamente desconhecida.

Outro aspecto é que o marxismo fez uma crítica insuficiente das idéias anteriores ou que se desenvolveram paralelamente a ele. A visão que o marxismo tem do desenvolvimento da sociedade humana, por exemplo, sofre indiscutivelmente de certa impregnação de positivismo. Basta ler um dos prefácios de O Capital em que Marx se refere às leis sociais. Ele afirma que são leis tão rígidas e tão objetivas quanto as leis naturais. Essa equiparação, é preciso ter a coragem de reconhecer, está errada em princípio. A mesma idéia ressurge em Lênin. No texto Quem são os inimigos do povo, Lênin defende que o conhecimento da sociedade humana pode chegar a atingir o mesmo grau de precisão que o conhecimento das ciências naturais. Aí se cometem dois erros. O primeiro é a equiparação das leis sociais às leis naturais. O segundo é a visão determinista-mecânica das próprias leis naturais. Hoje, mesmo na esfera das ciências naturais, no terreno do conhecimento científico da natureza, existe uma avançada discussão sobre o determinismo probabilístico, que não é tão rígido, nem tão esquemático quanto se pensava no século XIX sob a influência da Mecânica.

A demarcação insatisfatória entre o desenvolvimento do universo natural e o das sociedades humanas, entre a esfera das ciências naturais e a das ciências sociais e, ainda, entre essas esferas e a das ciências psicológicas, significa uma insuficiência de elaboração do marxismo.

As consequências dessa insuficiência teórica na luta social são profundas. Porque, se você tem uma idéia de que a história marcha inevitavelmente para o socialismo, de que o socialismo já está equacionado e requer apenas firmeza e perseverança, então terá uma visão simplificadora do processo de luta pela vitória proletária e pela construção do socialismo. Querendo ou não, acaba passando a idéia de que a história está previamente definida. Na verdade, encontrar formas de garantir a vitória do socialismo é um problema prático e teórico que coloca as exigências em outro patamar.

É possível afirmar, portanto, que os fundamentos do marxismo não estão postos em cheque com a crise do socialismo, mas sua compreensão e seu desenvolvimento, sim. Houve um indiscutível empobrecimento na tradição marxista.

É o caso dessa afirmação tradicional de que o socialismo é inevitável. Não devemos confundir necessidade histórica com fatalidade histórica. O socialismo é necessário não no sentido de que seja fatal, como se o fim dessa fase histórica da sociedade humana já esteja assegurado. Pensar assim seria, realmente, incorrer numa visão determinista do desenvolvimento histórico da sociedade humana, anulando o papel da liberdade individual, da consciência humana, dos fatores subjetivos, enfim, da própria luta de classes. É preciso lembrar que o ponto de vista básico do marxismo na concepção da dinâmica histórica foi exposto por Marx, quando afirmou: são os homens que fazem a história, embora a façam a partir de condições objetivas, independentes de suas vontades individuais. Mas são eles que fazem a história. Vale recordar outra reflexão de Engels sobre o assunto: “Nada acontece na história sem passar antes pela consciência humana”. A liberdade humana é condicionada, mas é real.

Por isso a história humana é inseparavelmente objetiva e subjetiva. Mas, também por isso, não existe a inevitabilidade histórica do socialismo. Esse tipo de raciocínio de que o socialismo inevitavelmente vencerá, de que mais cedo ou mais tarde encontrará uma saída, pode ser tranquilizador para os socialistas, sobretudo numa fase de derrotas e retrocessos como a atual, mas é falso. No Manifesto Comunista existe uma passagem fundamental, onde Marx e Engels, depois de reconstituírem os grandes marcos históricos das lutas de classes, concluem mais ou menos assim: todas essas lutas terminaram ou com a vitória de uma das classes contendoras, ou com a ruína comum de ambas. Eles não anunciam um fecho inevitável da história, mas abrem uma alternativa: ou a vitória da classe progressista, ou a destruição mútua das classes em confronto, se o impasse não for solucionado.

Engels retoma essa idéia no Anti-Dühring, quando fala que a tendência de desenvolvimento da sociedade moderna aponta na direção do socialismo ou de uma forma nova de barbárie. Ele não elimina a possibilidade de que, se o socialismo não se tornar realidade, se a classe proletária não se conscientizar e não garantir a vitória e a construção do socialismo, a sociedade moderna entre num processo de desagregação. Portanto, Marx e Engels articulam dois aspectos. Por um lado, o capitalismo não é eterno. Aí entra o aspecto da necessidade histórica, vale dizer, da tendência objetiva que leva qualquer sociedade capitalista a aprofundar suas contradições estruturais e a entrar progressivamente em crise. Agora, se essa crise vai ter uma solução avançada ou uma solução regressiva, depende da luta de classes, da luta dos militantes socialistas, do empenho das forças sociais progressistas. Como alertou o escritor português José Saramago numa ponderação muito feliz: para que haja socialismo, é preciso que haja socialistas.

O socialismo não é, portanto, inevitável. As sociedades capitalistas não permanecem estacionadas. E a luta proletária e socialista tende a passar por avanços e recuos, por acertos e erros. No final do século XIX e começo do século XX, por exemplo, o mundo capitalista passou por uma série de transformações econômicas, políticas e culturais. Se as análises feitas até então pelos marxistas eram insuficientes em relação à fase anterior, embora representassem contribuições essenciais e indispensáveis, eram ainda mais insuficientes diante dos novos problemas que emergiam. A segunda revolução industrial, a passagem do capitalismo competitivo ao capitalismo monopolista, a formação do imperialismo moderno e a possibilidade de a burguesia monopolista dos países mais ricos fazer concessões expressivas, tanto do ponto de vista econômico quanto do ponto de vista político e cultural, à classe proletária de seus respectivos países – como o aumento real dos salários de determinadas categorias de trabalhadores e a legalização de sindicatos e partidos –, todos esses processos criavam condições inteiramente novas para a luta de classes.

Engels percebeu isso no fim da vida. Na “Introdução” que escreveu em 1895 para uma nova edição da obra de Marx As lutas de classes na França de 1848 a 1850, Engels apresenta a seguinte autocrítica: Marx e eu, por ocasião das revoluções de 1848, tínhamos uma idéia entusiástica e simples demais da revolução proletária. Este é o tom do Manifesto Comunista, de 1848. Contávamos, prossegue Engels, que haveria uma revolução e que passaríamos, rapidamente, da etapa burguesa à etapa proletária. Já fizemos uma autocrítica inicial dessa concepção por volta de 1850, o que levou ao racha da Liga Comunista. Mas aquela autocrítica foi insuficiente, como a experiência da Comuna de Paris demonstrou. O que temos diante de nós é um processo histórico novo. Todas as revoluções feitas até agora, inclusive a revolução democrática burguesa da França, que era nossa grande fonte de inspiração e ensinamento, foram revoluções de minorias. A revolução proletária tem que ser uma revolução da maioria. No quadro novo que está criado, sobretudo com a democracia burguesa ampliada, que reconhece o sufrágio universal e a legalização de sindicatos e partidos operários, a revolução não se tornará possível enquanto a maioria dos trabalhadores não estiver imbuída da vontade consciente de construir uma nova sociedade. Nas palavras textuais de Engels: “Passou o tempo dos golpes de surpresa, das revoluções executadas por pequenas minorias conscientes à frente das massas inconscientes. Onde quer que se trate de transformar completamente a organização da sociedade, cumpre que as próprias massas nisso cooperem, que já tenham elas próprias compreendido do que se trata, o motivo pelo qual dão seu sangue e sua vida. Isto é o que nos ensinou a história dos últimos cinquenta anos. Mas para que as massas compreendam o que é necessário fazer é mister um trabalho longo e perseverante”.

Comparativamente, a situação na Rússia czarista e na maioria dos países do Leste europeu era distinta. O capitalismo ainda não se desenvolvera plenamente nesses países e seu nível econômico, político e cultural era muito atrasado. Havia pesadas restrições ao direito de voto e à liberdade de expressão e de organização. A situação material dos operários e, sobretudo, dos camponeses era muito precária. Lênin não tinha presentes, portanto, os problemas que preocupavam Engels no fim da vida. Feita a revolução na Rússia, contava com sua rápida expansão pelos países vizinhos e até na desenvolvida Alemanha.

Estabilizada a ordem capitalista, bloqueada a propagação da Revolução de Outubro, é que Lênin começa a se debruçar sobre as difíceis condições da luta operária na Europa Ocidental. O livro O esquerdismo, doença infantil do comunismo reflete suas novas preocupações. Alerta que a tendência a transplantar a experiência soviética para os países da chamada Europa Ocidental não correspondia às condições reais desses países. Insiste que é preciso repensar as táticas de atuação na Europa Ocidental e propõe à Terceira Internacional uma série de políticas novas. Estabelece relações com os partidos sociais-democratas de esquerda e de centro, recebe dirigentes desses partidos pessoalmente em Moscou, busca a unidade sindical entre as entidades dirigidas por comunistas e sociais-democratas, começa, enfim, a tentar formular uma concepção de luta revolucionária prolongada, advertindo que a passagem à revolução nesses países seria muito mais complexa e demorada.

As formulações de Gramsci nascem nesse contexto. São um eco tardio dessas reflexões que Lênin esboça, mas não consegue levar a termo. Gramsci vê as condições diferentes da luta de classes em países capitalistas com tradição democrática e estabilidade econômica. Esforça-se para elaborar uma estratégia de “guerra de posições”, de preparação prolongada e multilateral dos trabalhadores para a luta pela transformação revolucionária da sociedade. Procura evitar o reformismo sem cair no blanquismo.

Hoje, os socialistas enfrentam desafios semelhantes. Precisam entender o capitalismo contemporâneo, a terceira revolução industrial, a globalização financeira, comercial e produtiva e, consequentemente, uma série de alterações que estão ocorrendo tanto na base econômica, quanto na estrutura de classes e na superestrutura política e cultural dos países capitalistas.

Por exemplo: a classe proletária, sobretudo seu núcleo operário, tende a se tornar minoritária nas sociedades capitalistas avançadas. Até recentemente, as respostas que os marxistas davam a essa tese consistiam apenas em rotulações: “Essa alegação é uma tese revisionista, foi Bernstein quem começou a levantar essa idéia”, e ponto final. Ninguém se debruçava sobre as estatísticas que apontavam e continuam apontando essa tendência, que ainda não se concretizou na maioria dos países, mas em alguns já começa a manifestar-se.

Trata-se de uma tendência objetiva, que resulta de uma convergência de processos: a continuação do capitalismo, o desenvolvimento das forças produtivas, a elevada produtividade do trabalho que reduz o tempo e também a força de trabalho necessários para a produção, o crescimento dos setores de serviços e da parcela de empregados em tarefas não-produtivas no próprio setor industrial e agrícola, a expansão das áreas da superestrutura política e cultural, tudo concorrendo para modificar progressivamente a estrutura de classes e camadas das sociedades capitalistas contemporâneas.

Essas tendências de evolução não negam a necessidade do papel hegemônico e dirigente da classe proletária, principalmente de seu núcleo operário, na luta pelo socialismo. A burguesia é absolutamente minoritária nas sociedades capitalistas e, no entanto, é hegemônica. Mas isso exige que a classe proletária seja capaz de estabelecer uma aliança correta e duradoura com as outras classes e camadas trabalhadoras.

Para isso é preciso, antes de mais nada, entendê-las. O campesinato, por exemplo, é uma classe em extinção na maioria dos países capitalistas desenvolvidos. Não tem mais nenhum peso social. E, mesmo em boa parte dos países capitalistas periféricos e dependentes, vai-se dividindo numa minoria que se aburguesa e numa maioria que se proletariza. Na época dramática de Lênin, no começo do século XX, o fundamental era a aliança operário-camponesa. Agora, ao contrário, as camadas médias assalariadas – ou vinculadas a atividades produtivas em cargos executivos e técnicos, ou vinculadas a serviços e atividades superestruturais, como saúde, educação e outras atividades do Estado – têm enorme peso social. Crescem também novas modalidades de trabalho autônomo e de pequenos negócios e pequenos fabricos como formas de resposta ao desemprego estrutural. A aliança da classe proletária com esses setores é, hoje, um problema tão importante quanto era no começo do século XX a aliança operário-camponesa.

Todos esses problemas teóricos representam desafios de profunda repercussão política sobre os quais os marxistas ainda não se debruçaram seriamente, correndo o risco de se tornarem forças partidárias e culturais isoladas e ineficientes.

Recapitulando, seria possível afirmar que os marxistas precisam, para superar a crise do projeto socialista, redescobrir o marxismo original e voltar a Marx e Engels para recolocar seu pensamento de cabeça para cima. Ele foi posto de cabeça para baixo no sentido de que, em vez de se dar prioridade à classe proletária, se deu prioridade à vanguarda, quando o princípio fundamental do marxismo está inscrito no Estatuto da Primeira Internacional: a emancipação dos trabalhadores tem que ser obra dos próprios trabalhadores. Marx e Engels jamais tiveram a concepção de uma vanguarda desvinculada das massas trabalhadoras. Desde o Manifesto Comunista eles insistem que os comunistas são apenas uma parcela do movimento operário, a parcela mais combativa e consciente, que tem a visão do processo em seu conjunto, mas apenas uma parcela.

Então, o primeiro problema é este: os marxistas precisam levar a sério o que dizem, ou seja, que é a luta de classes que movimenta a sociedade, que são as massas trabalhadoras que constroem a história e que a vanguarda é necessária para ajudá-las a tomar consciência, a se organizarem, a encontrarem o caminho da vitória, mas não podem jamais substituí-las. Jamais o movimento da história será inteiramente consciente. Sempre haverá a combinação entre o movimento consciente e o movimento espontâneo. Portanto, a iniciativa das massas sempre será muito maior e mais rica do que a iniciativa de qualquer vanguarda, e é preciso, portanto, respeitá-la e estimulá-la.

Sendo isso verdade, será preciso também entender de forma nova a relação entre a prática e a teoria. Jamais a teoria dará conta cabal da experiência prática dos trabalhadores, da humanidade. Por mais desenvolvida que seja a teoria, sempre surgirão problemas novos e sempre velhos problemas poderão ser postos de uma maneira mais profunda.

Repensada a relação entre as massas de trabalhadores e as vanguardas políticas e culturais, e reconsiderada a relação entre a prática e a teoria, os marxistas terão que repensar também a relação entre centralismo e democracia. A ênfase tem que ser posta na democracia e não no centralismo. Porque é exatamente pondo a ênfase na democracia que os marxistas estarão sendo consequentes com a idéia de que a história é construída, fundamentalmente, pela iniciativa e pela luta das massas trabalhadoras.

Operar essas reviravoltas significa recuperar, de maneira profunda, a concepção materialista-dialética da história e romper, de maneira definitiva, com os contrabandos positivistas e deterministas que se infiltraram em certa tradição marxista e a empobreceram.

Em suma, os marxistas precisam enfrentar o desafio de entender o capitalismo contemporâneo, atualizando a análise de sua base econômica e de sua estrutura de classes, e desenvolvendo a teoria do Estado burguês de nossos dias e da configuração atual da cultura burguesa. Por outro lado, precisam reconstruir, de maneira científica e aprofundada, as experiências socialistas, resgatando o que nelas existiu de válido, por exemplo, a lição de que a luta contra a burguesia é inevitável e que, por isso, é indispensável a existência de um Estado que inclua aspectos coercitivos contra os exploradores e criminosos. Mas precisam também recuperar o que existiu de errado nessas experiências, pois a construção autêntica do socialismo tem que ser acompanhada de uma democratização cada vez maior do Estado, de uma participação cada vez maior dos trabalhadores na gestão econômica, de uma extensão cada vez maior da cultura e de um desenvolvimento cada vez mais compartilhado da riqueza material e da compreensão científica e crítica do mundo.

Digamos, então, que, no terreno teórico, são estes os dois desafios básicos que os trabalhadores e seus representantes precisam enfrentar para levar adiante sua luta emancipadora: uma compreensão mais profunda do capitalismo contemporâneo e uma reavaliação mais séria das experiências socialistas. Agora, para fazer isso, terão que rediscutir a filosofia do marxismo, repensar a relação entre mundo objetivo e consciência subjetiva, alcançar um entendimento mais profundo do intrincado processo de interpretação e transformação do mundo.



P. S. – Esse artigo baseia-se, com alguns retoques localizados, em entrevista que concedi em 1991, cujas teses centrais me parecem ainda pertinentes para o debate teórico e político atual de comunistas e socialistas. Foi enviado à “Tribuna de Debates – Amigos do PCB”, preparatória do XIV Congresso Nacional do partido, e publicado em 31 de agosto de 2009 (www.pcb.org.br). [D.P.]

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