8 de agosto de 2011

Mil e uma Hiroximas*

imagemCrédito: PCB


Roberto Numeriano**

Loucura é a primeira palavra diante do horror de um homem que mata dezenas de pessoas. A classificação do ato como produto de uma mente insana, doentia, parece tornar o autor imune a uma condenação nos marcos de uma racionalidade jurídica. Uma outra palavra é chamar o autor de monstro. O monstro é um ser inumano, besta inclassificável nos termos de uma ideologia política ou religiosa. Ambos, louco e monstro, surgem então como seres irredutíveis a uma compreensão de quem, pessoa ou instituição, se considera hábil e capaz para julgar e condenar.

Ocorre que o genocida de Oslo não pode ser compreendido como louco ou monstro. Assim classificá-lo é cair no enredo midiático, sensacionalista e analiticamente rebaixado. Anders Breivik matou 77 pessoas e explodiu um carro-bomba sustentando-se num discurso antigo, reatualizado em contextos ideológicos e políticos novos. Estes contextos são o regresso de agendas comunistas diante da crise econômico-social (e civilizacional, também) e a ascensão

do islamismo como movimento religioso, social e político, para além da questão cultural e étnica. São, não por acaso, ações reativas diante da queda desse muro concreto que se chama neoliberalismo – uma ideologia econômica que significou mais lucro para os ricos e mais miséria para quem trabalha.

Há um medo feroz que constitui a reação do genocida de Oslo. Há uma pulsão de morte para tentar matar esse medo. Há uma negação do outro diferente (negro, pobre, homossexual, comunista, aleijado, mulher, judeu, árabe, liberal, cego, prostituta etc), que ameaça uma suposta ordem mítica, pura, sob a qual todos saberiam quais são as causas do mal-estar da civilização. Há, por fim, uma ideologia cevada nas velhas entranhas do nazismo-fascismo, que sai das sombras justamente porque caiu o muro da mistificação econômica e ideológica erguido após a queda do muro do Berlim e do fim do regime soviético.

O horror do ato está além do terrorismo político ou de caráter religioso. O horror está no fato de que o autor agiu como um homem comum, como eram comuns milhões de alemães ou italianos que acompanharam a ascensão de Hitler ou Mussolini nos anos 30. O que mais importa para tentar explicar o ato é que milhões de pessoas comungam dos mesmos ideais desumanos e genocidas do seu autor. E o sinal disso é que a extrema-direita tem avançado nas disputas eleitorais em todos os países europeus, cevando-se no medo das burguesias médias e classes de banqueiros e industriais.

Por isso, devemos compreender Anders Breivik nos termos do discurso que o inspira, ideológica e politicamente. Há, sim, loucura e monstruosidade por trás dele. E ambas devem ser chamadas pelo seu velho nome de batismo: capitalismo, como ideologia e sistema de produção. E o capitalismo é ainda mais letal quando naturaliza no ser humano a idéia de que a exploração do homem pelo homem, sua alienação e sua escravização num mundo onde não haveria história e luta, seriam elementos imanentes à sua existência, material e espiritual.

O ideário nazista é a expressão racional desse regime como ideologia e instituição política. O discurso de Breivik apenas torna visível o que constitui a essência do capitalismo. E não deixa de ser sintomático que, entre outros alvos, ele ataque também o multiculturalismo: espécie de concessão político-ideológica do capitalismo ao “diferente”, mas desde que este “diferente” não queira emancipar-se revolucionariamente além dos limites dos seus guetos. Ou seja, Breivik ataca até o que é, em forma e conteúdo, um embuste da ordem liberal-capitalista: ele quer “zerar” a ordem a partir do mito de um mundo puro onde habitariam uma classe e raça superiores.

A besta nazista começa a sair das sombras nestes tempos de crise econômica e de valores humanos, políticos e sociais. Daí ser necessário reafirmar a luta e a hipótese comunista como a maior e melhor crítica diante dos escombros de uma Europa e de um mundo submetidos à miséria do capital na sua forma mais virulenta e anti-humana. Estamos travando grandes batalhas de uma guerra político-ideológica longa: Oslo é apenas mais um dos combates.

*Nosso título alude a Hiroxima por dois motivos: em memória dos mortos no ataque covarde e genocida dos EUA contra essa cidade japonesa, e porque as vítimas de Oslo , em essência, sofreram o mesmo terror engendrado no ódio e vingança.

**Roberto Numeriano é doutor em Ciência Política, membro do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e pesquisador do Núcleo de Estudos de Instituições Coercitivas e da Criminalidade (NICC/UFPE).

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