
– a emergência de soluções para um mundo multipolar daqui até 2015
por GEAB*
Há momentos em que a história se acelera. Seja qual for o desfecho das negociações sobre o shutdown e
o tecto da dívida, Outubro de 2013 é um deles. O bloqueio levado
demasiado longe abriu os olhos daqueles que ainda apoiavam os Estados
Unidos. Um líder é seguido quando nele se acredita, não quando é
ridículo.
"Construir um mundo desamericanizado": há alguns anos, a afirmação
teria provocado um sorriso. No máximo, teria passado por uma provocação
de Hugo Chavez. Mas quando se assiste em directo à falência dos Estados
Unidos, e é uma agência de notíciasoficial da China que o diz [1]
, o impacto já não é o mesmo. Na realidade a notícia descreve em voz
alta um processo já amplamente iniciado: simplesmente, agora é tolerado
que se fale disso publicamente. O bloqueio do governo americano pelo
menos teve o mérito de desatar as línguas [2] . Que ninguém se engane, esta análise não apareceu num media chinês por acaso, ela reflecte o endurecimento de tom de Pequim.
Com efeito, se o mundo inteiro retém a respiração diante do jogo
patético das elites estado-unidenses, não é por compaixão – é para
evitar ser arrastado na queda primeira potência mundial. Cada um tenta
desligar-se do império americano e afastar-se dos Estados Unidos,
desacreditados definitivamente pelos recentes episódios sobre a Síria,
o tapering, o shutdown e agora o tecto da dívida. O
poder lendário dos Estados Unidos agora é apenas um poder de perturbação
e o mundo compreendeu que já era tempo de se desamericanizar.
Esta perspectiva e a verbalização do indizível [3]
libertam finalmente todo um conjunto de soluções que até então estavam
nos primórdios e ainda eram até mesmo repelidas por alguns. Estas
soluções aceleram a construção do mundo posterior e abrem-se sobre um
mundo multipolar organizado em tornos dos grandes blocos regionais. Após
um exame dos infortúnios americanos, nossa equipa analisa neste número
do GEAB as forças que moldam este mundo em mutação. Na parte
"Telescópio" retornaremos igualmente ao estado real da sociedade
estado-unidense que, por trás da miragem da bolsa e da finança, explica o
fracasso do american way of life e participa neste
distanciamento em relação ao modelo americano. Finalmente, actualizamos
nossa avaliação anual dos riscos-país a fim de completar este panorama
mundial, assim como apresentamos as recomendações tradicionais e o
GlobalEuromeÌtre.
Plano do artigo completo:
1. "No we can't"
2. Crises em rajada
3. Shutdown: a risada do mundo, mas com um riso amarelo
4. Desamericanisação em todos os níveis
5. O petrodólar está morto, viva o petroyuan
6. A China toma a Eurolândia pela mão
7. Rússia, America do Sul: sequência da desocidentalisação
Apresentamos neste comunicado público as partes 1, 2 e 4.
"No we can't"
Como os tempos mudam. O mundo inteiro esqueceu as palavras freedom,
hope ou o famoso slogan "Yes we can", representativos da sociedade
americana aos olhos de gerações anteriores, e passou agora a falar de
taper, shutdown e tecto [da dívida]. Não se trata exactamente da mesma
dinâmica e a imagem, de positiva, tornou-se francamente negativa.
É impressionante constatar a que ponto a actual situação americana
confirma o provérbio de que uma infelicidade nunca vem só. Num período
de mês e meio, primeiro uma humilhação sobre o dossier sírio por parte
da própria Rússia. Depois um banco central que confessa a
impossibilidade de diminuir a quantitative easing [4]
. A incapacidade de votar um orçamento, o que implica o encerramento do
Estado federal. Um shutdown que se prolonga bem para além do razoável [5]
. Uma negociação sobre o tecto da dívida em impasse a dois dias da data
limite. Os Estados Unidos pressionados pelo G20 a ratificar a reforma
do FMI que eles bloqueiam desde há três anos, e pelo Banco Mundial e o
FMI a porem na ordem suas finanças [6] . E agora o tiro de aviso chinês.
Crises em rajada
Esta sucessão de crises é absolutamente inquietante para o país e
testemunha uma aceleração sem precedentes e um choque iminente. Há
fatalidade nestas crises. Mas há também uma dose de recuperação
estratégica. O shutdown pôde assim ser instrumentalizado por Obama para
fazer pressão sobre os republicanos a fim de que eles votem a elevação
do tecto da dívida, compromisso bem mais importante para os Estados
Unidos. Isto não é visivelmente senão um êxito parcial, mas pode-se na
mesma esperar uma elevação provisória, que adia todos os problemas por
algumas semanas [7] ; entretanto não é de excluir que a
via trágica seja escolhida, pois não se trata mais de uma decisão
racional e que poderia ser antecipada.

Com efeito, se os comentaristas se concentram no Tea
Party o qual, do mesmo modo como accionistas minoritários chegam a
controlar uma sociedade através de uma holding, conseguiu sequestrar o
Partido Republicano e a sociedade americana, uma outra leitura também
pode ser efectuada. Agora numerosos americanos vêm a realidade de
frente: seu país está na falência. Portanto, será melhor retardar a
confrontação com a realidade, deixando que se ampliem os problemas, ou
mais vale resolvê-los agora? Uma grande parte da população não vê com
maus olhos um incumprimento de pagamento [8] . Além
disso, que outro solução há, a prazo? Não haverá vontade dos
republicanos em precipitar a crise? Esta é a ocasião sonhada uma vez que
eles sempre podem culpar o Tea Party que declara sem rodeios que
"nenhum acordo vale mais do que um mau acordo" [9] . O
que queremos dizer é que desta vez, ou provavelmente numa outra ocasião
num futuro próximo, eles poderiam ser tentados a cortar o nó górdio.
Da mesma forma, uma recuperação estratégica certamente teve lugar
quando o Fed fez marcha-atrás quanto à redução da sua facilidade
quantitativa. Por que terá ele dado a entender até o fim que diminuiria a
QE3, sem o fazer no final? É a primeira vez que o Fed provoca uma
surpresa nos investidores, todos 100% convencidos da diminuição gradual,
pois havia feito da forward guidance um princípio bem
estabelecido. Não haverá realmente nenhuma ligação com os grosseiros
delitos de iniciados verificados no momento do anúncio do Fed [10]
, que proporcionaram milhares de milhões aos seus autores? Tudo isso
apoia a nossa hipótese de estabelecimentos financeiros americanos em
estado de desespero que devem ser postos a flutuar discretamente por
operações deste género, deixando em má situação a credibilidade do Fed.
Mais uma vez soluções de curto prazo que pioram a situação mas adiam um
pouco o desenlace fatal. Acerca destes bancos americanos, não somos mais
os únicos a puxar a campainha de alarme: o Banco da Inglaterra aguarda
falências de grandes bancos que teriam, segundo ele, perdido o estatuto
de "too big to fail" [11] . Reiteramos portanto nossa advertência a respeito.
Tal como um boxeur, todos estes golpes encaixados tornaram o país
grogue e não é preciso senão um último para o derrubar no chão. Se ele
não vier de um incumprimento de pagamento americano em Outubro, isto
acontecerá com algum outro compromisso que tiver sido adiado mas que,
desta vez, não cederá.
Shutdown: a risada do mundo, mas com um riso amarelo
Quando escrevíamos no GEAB nº 77
a respeito da votação do orçamento: "não há dúvida que um compromisso
será encontrado no último minuto ou, mais provavelmente, algumas horas
ou mesmo alguns dias após a data limite", é forçoso constatar que ainda
subestimávamos as divergências políticas em Washington uma vez que o
"alguns dias" que tínhamos em mente transformaram-se em semanas. O
diário Le Monde tinha como título do seu sítio web "o lamentável espectáculo de Washington" [12] . Mas finalmente este shutdown não tem um impacto desmedido sobre os mercados financeiros [13]
, portanto tudo vai bem, parecem pensar numerosos republicanos que se
acomodam muito bem a uma paralisia do Estado Federal e à redução das
despesas públicas que se seguem.
Esta não é a opinião dos países que possuem um montante elevado de títulos do tesouro dos EUA, que se sentem lesados [14]
pelos Estados Unidos. Eles estão estupefactos pela insustentável
ligeireza dos EUA e pela atitude irresponsável daquele que ainda
recentemente era "o patrão". Se o país entra em incumprimento em relação
à sua dívida, a onda de choque será certamente terrível. Entretanto,
isto não seria o fim do mundo uma vez que um eventual incumprimento
poderia simplesmente assumir a forma de um atraso de pagamento de alguns
dias; além disso, as diferentes regiões do mundo seriam afectadas muito
desigualmente conforme o seu grau de desligamento da economia
estado-unidense. Não, o país que mais sofrerá com esta solução (e
qualquer outra, igualmente) será certamente os próprios Estados Unidos.
Para registo: recordamos que eles detêm dois terços da sua própria
dívida pública.

Eis porque os países melhor governados já começaram
este grande desligamento, à cabeça dos quais está a China que sabe,
desde Sun Tzu, que "quando o trovão explode já é demasiado tarde para
tapar os ouvidos". [15]
Notas:
(2) Mesmo o Financial Times
corrobora (02/10/2013): "o sistema actual baseado no dólar é
intrinsecamente instável". Confissão incrível da parte de um jornal
financeiro anglo-saxónico.
(3) A repercussão mundial recebida pelo artigo chinês mencionado
acima mostra o interesse atribuído a esta declaração da segunda potência
mundial e confirma que ela rompeu um tabu que vai permitir por em acção
soluções longamente esperadas pela maioria dos países. Ler por exemplo a
excelente análise do Asia Times , 15/10/2013.
(4) Fonte: Bloomberg , 18/09/2013.
(5) Fonte: CNN , 14/10/2013.
(6) Fonte: por exemplo PressAfrik , 12/10/2013.
(7) Fonte: New York Times , 15/10/2013.
(8) 58% dos americanos votariam contra a elevação do tecto da dívida. Fonte: Fox News , 08/10/2013.
(9) Fonte: Le Monde , 15/10/2013.
(10) Fonte: USA Today , 24/09/2013.
(11) Fonte: The Telegraph , 12/10/2013.
(12) Fonte: Le Monde , 14/10/2013.
(13) Evidentemente, uma vez que o Fed prossegue sua quantitative easing desenfreada.
(14) São ainda assim refens consentidos uma vez que financiaram maciçamente e voluntariamente este país...
(15) Sun Tzu, A arte da guerra , século VI AC.
15/Outubro/2013
[*] Global Europe Anticipation Bulletin.
O original encontra-se em www.leap2020.eu/...
Este comunicado público encontra-se em http://resistir.info/ .
Começou a desamericanização do mundo
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5
Oleh
Kaizim