José Arbex Jr*
Exatamente como aconteceu no dia 3 de outubro, 36 milhões de eleitores (número equivalente 27% do universo de 136 milhões de brasileiros qualificados para votar) preferiram não depositar o seu voto em qualquer candidato à presidência. Esse é, de longe, o dado mais significativo de segundo turno das eleições: 4,7 milhões anularam o voto, 2,5 milhões votaram em branco e 29 milhões se abstiveram. Dilma Rousseff foi eleita, portanto com apenas 41% do total de votos possíveis, ao passo que José Serra obteve 32% (isto é, ficou míseros 5 pontos percentuais acima dos votos não válidos e das abstenções).
Para um país onde o voto é obrigatório, os resultados revelam, no mínimo, que boa parte de população não deposita qualquer confiança ou entusiasmo nos dois candidatos. Os votos em Dilma tampouco demonstraram uma suposta força de “esquerda a direita” como alardeiam supostas lideranças da mais suposta ainda “esquerda”, já que boa parte dos votos foi carreada pela máquina coronelista do PMDB, com a preciosa ajuda de tradicionais esquerdistas do quilate de José Sarney e Michel Temer, e outra parte, ainda foi depositada pelo subproletariado cooptado pela distribuição das migalhas oriundas do assistencialismo estatal.
Os votos em Dilma não refletem sequer o apoio do Partido dos Trabalhadores à sua candidatura. Dilma foi a “candidata do lula”, não do PT a presidência do país. Ela filiou—se ao PT apenas em 2001, não tem base partidária e foi guindada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva à chefia da casa civil após a queda de José Dirceu, em 2005, em detrimento da opção por petistas “históricos”. Da mesma forma, Lula acertou “pelo alto” um acordo com o PMDB, assegurando-lhe o cargo de vice de Dilma (Michel Temer) e o apoio do PT à candidatura aos governos do Maranhão (Roseana Sarney) e Minas Gerais (Hélio Costa).
Os conflitos provocados no PT por essas medidas foram públicos, assim como as defecções que o partido sofreu a partir de 2003, incluindo a de petistas “emblemáticos” como Heloísa Helena, Marina Silva e Ivan Valente, entre outros. A capacidade de Lula impor a sua vontade ai PT decorre de uma combinação de múltiplus fatores: alianças internas entre grupos que formam a “máquina” do partido, controladas diretamente por ele; uma política de cooptação de militantes guinados a cargos públicos bem remunerados e o mais importante: o fortalecimento do “lulismo” descolado do PT.
O “lulismo” – do qual Dilma tornou-se imagem refratada – é, provavelmente, o fenômeno político e social mais importante e nefasto do cenário conjuntural brasileiro contemporâneo. Começou a adquirir uma forma nítida e concreta a partir de 1998, quando Lula, antes identificado com as grande greves do ABC, passou a se apresentar como “lulinha paz e amor” e a cortejar o voto do subproletariado – constituído por trabalhadores informais, sem carteira assinada, dispostos a aceitar salários miseráveis e condições indignas de trabalho -, com um discurso assistencialista (centrando no programa Fome Zero), ao mesmo tempo em que acenava para os banqueiros a disposição de aceitar as regras do jogo financeiro, compromisso consagrado pela “carta aos Brasileiros”,em 2002.
Em sua primeira gestão, Lula criou uma série de programas sociais destinados a atrair o subproletariado. No final de 2003, lançou o Programa Bolsa Familia (PBF), que hoje atende a 12 milhões de lares. Entre os milhões daqueles que votaram em Lula pela primeira vez em 2006, e os que elegeram Dilma agora, a maioria era composta por nordestinos de renda baixa, o público alvo por excelência do PBF. Combinado com o PBF, Lula manteve o controle da inflação, garantiu um aumento menor do preço da cesta básica nas regiões mais pobres, assegurou um ganho real de 25% no salário mínimo, criou o “crédito consignado” e outras medidas destinadas a expandir o financiamento popular. Além disso, lançou uma série de programas que beneficiam setores tradicionalmente marginalizados, como o Luz para Todos (de eletrificação rural).
Se a “distribuição real de renda” é cantada em verso e prosa pela “esquerda” lulista como “prova” de que seu governo tem “uma lado progressista”, a contrapartida é o fato de que Lula passou a governar com o apoio direto do capital financeiro, cujos lucros, sem precedentes na história do país, somam dezenas de vezes o total dos investimentos em programas sociais. A contrapartida é o apaziguamento de uma ampla camada conservadora da classe média que quer a “ordem” e a estabilidade, e o amor do subproletario, que vê no presidente um “igual” que “chegou lá” e está “ajeitando as coisas” para os mais pobres. Seu governo incorporou plenamente a noção conservadora que dispensa a organização da classe trabalhadora, pois um Messias conduz as reformas.
Mas para fazer isso Lula teve que “congelar”- principalmente, por meio da cooptação – os movimentos sociais, as principais lideranças sindicais do país e “rifar” o seu próprio partido, o PT, que hoje existe apenas como sombra do poder pessoal de um presidente que se coloca acima de todos os partidos. O “lulismo” significou, portanto, o abandono dos perspectivas de esquerda que estiveram na base da fundação do PT, as quais pressupunham uma elevação da consciência de classe por meio da luta política. Houve , ao contrario, um rebaixamento da consciência. Por essa razão é que o escândalo do “mensalão”, em 2005, não impediu a reeleição de Lula: ele tinha o apoio de uma camada da sociedade que não lê jornais e que não se sentiu afetada. Por esse mesmo motivo, não teve repercussões mais desastrosas as revelações. Às vésperas do primeiro turno de 2010, das maracutaias envolvendo Erenice Guerra, amiga intima de Dilma e sua substituta na casa civil.
O governo Dilma – o Lula do mundo bizarro – será, necessariamente, muito pior e mais caótico. Lula, ao menos, tem brilho próprio, controla a máquina petista e coloca-se acima da disputa entre as várias facções dos grupos burgueses (negocia, costura acordos e concilia com todos eles, e ainda faz a ponte com o senhores do Império). Dilma Roussef não é nada disso. Ela deve sua eleição a Lula, sem ter o seu carisma nem base organizada para sustentar o seu governo. Começa como refém do PMDB no congresso e comprometida até o pescoço com um programa de governo que significa a manutenção da total subordinação ao capital financeiro.
A única perspectiva real que sobre à esquerda brasileira é romper com a paralisia que a marcou durante os oito anos de Lula e passar à oposição ativa, mais ou menos como propunha a fórmula lançada pelo comitê central do PCB, logo após o primeiro turno: “Derrotar Serra nas urnas e depois Dilma nas ruas.” A primeira parte já se cumpriu.
*José Arbex Jr. é jornalista
Publicado em "Caros Amigos", edição de novembro de 2010
DERROTAR DILMA NAS RUAS
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Rubens Ragone